Festa do Avante! homenageia Cantigas do Maio, que há 50 anos revolucionou a música popular portuguesa
A Festa do Avante! lançou aos artistas que este ano se vão apresentar na Atalaia o seguinte desafio: que incluam na sua actuação uma versão de uma das canções do álbum Cantigas do Maio, de José Afonso, que em Outubro fará 50 anos de edição. Qual a razão deste convite?
Cantigas do Maio foi considerado, em 1978, o melhor álbum de sempre de Música Popular Portuguesa
Há 50 anos, Adriano Correia de Oliveira gravou o combativo disco Gente de Aqui e de Agora. Carlos Paredes gravou o excepcional Movimento Perpétuo. José Mário Branco lançou o fundamental Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades. Sérgio Godinho gravou o brilhante Os Sobreviventes. Nenhuma destas gravações históricas, todas elas indispensáveis numa discografia básica da música portuguesa de origem popular, de protesto ou com cariz tradicional, acabaria por ter a importância da gravação do álbum Cantigas do Maio, de José Afonso.
Para explicar este facto há, em primeiro lugar, razões históricas-musicais: a música que se convencionou chamar de protesto ao fascismo português pode muito bem, embora discutivelmente, ser dividida em três fases.
Três fases da «música de protesto»
A primeira fase é protagonizada por Fernando Lopes-Graça, um dos maiores compositores portugueses do século XX e militante do PCP, com as suas recolhas de letras junto de poetas democratas.
Com elas elaborou composições para um conjunto de obras a que chamou de Canções Heróicas. É um trabalho que inicia em 1945 e que prolonga durante várias décadas, a que junta a recolha etnográfica de música tradicional portuguesa, de canções regionais.
As Heróicas e as Canções Regionais municiaram grupos corais em múltiplos espectáculos de «resistência» ou de iniciativas da oposição, em particular o coro da Academia de Amadores de Música, que o próprio maestro dirigiu e que hoje tem o seu nome.
Nesta edição da Festa do Avante!, três dessas Heróicas irão ser reinterpretadas no concerto sinfónico da noite de sexta-feira, com orquestrações especialmente feitas para o evento por Ana Seara, para a voz de Cátia Moreso.
A segunda fase desta música antifascista pode ser marcada pelas primeiras gravações com letras de protesto do início da década de 1960, feitas por José Afonso e Adriano Correia de Oliveira (também militante do PCP), influenciadas estilisticamente pelo Fado de Coimbra, bem como o primeiro álbum de Luís Cília (o autor do hino Avante, Camarada), de 1964, Portugal-Angola: Chants de Lutte, que foi gravado em França e que é o primeiro a denunciar explicitamente a guerra colonial.
Nesta fase multiplicam-se os chamados «baladeiros» que, inspirados por Zeca, Adriano e Cília, ou ainda por músicos da protest song norte-americana e da chanson francesa, apresentam-se acompanhados por uma guitarra a cantar poemas «com mensagem», como se dizia na época, de crítica social, política e abertamente de contestação ao regime.
Estes «baladeiros» têm um grande impacto junto da juventude portuguesa, muitas vezes através de actuações organizadas por associações de estudantes ou colectividades operárias ou desportivas.
Estes artistas, ao serem integrados na programação musical do espectáculo televisivo Zip Zip, de 1969, mesmo com as limitações da censura, obtêm depois uma projeção transversal à sociedade portuguesa da época.
Acontece então o Cantigas do Maio, que inicia essa terceira fase da música de protesto em Portugal.
Com este álbum José Afonso começa por promover uma mudança no método de produção do disco – apenas esboçada em Traz Outro Amigo Também, de 1970 –, que eleva bastante o padrão de exigência qualitativa que se praticava no nosso país.
O disco foi gravado em França, num estúdio moderno, com capacidades técnicas bastante superiores às então existentes em Portugal.
Além disso, José Afonso entrega a José Mário Branco o trabalho, decisivo, de orquestração, arranjos e produção do álbum (que sairá com a chancela da editora Arnaldo Trindade), o que fomentou a imaginação criativa dos dois cantautores pois, nitidamente, alimentaram-se do talento um do outro.
Essa imaginação aditivada permitiu concretizar um outra zona de inovação: a reinterpretação heterodoxa da música tradicional portuguesa, libertando-a de exagerados espartilhos formais, ultrapassando a questão do respeito pela autenticidade original, modernizando-a sem a fazer perder traços identitários fundamentais e engajando-a na luta política, originando um molde para a futura Música Popular Portuguesa (MPP).
Influência determinante
O Cantigas do Maio influenciou assim toda a produção discográfica musical portuguesa dos anos seguintes, incluindo a do próprio Zeca Afonso, e o seu modelo conceptual de MPP foi reinterpretado por muitos outros, num movimento que verdadeiramente «explodiria» no pós-25 de Abril de 1974, através de inúmeros grupos e artistas que se reivindicaram e reivindicam desse novo género.
José Afonso acrescenta ainda em Cantigas do Maio uma outra inovação: a inclusão de influências árabes, africanas e brasileiras à sua música. José Cordeiro, numa análise escrita em 1972 na revista Mundo da Canção, que Eduardo M. Raposo transcreve no seu livro Amor e Vinho – da Poesia Luso-Árabe à Nova Música Portuguesa, faz notar o seguinte: o Cantigas do Maio «introduz novos instrumentos, como a darbuka, o bongo berbere, as tumbas, o adufe, o tamborim brasileiro, a guimbarda e os apitos de fole, além de efeitos especiais, como os passos no areal. Tudo isto, para além dos instrumentos habitualmente utilizados, como a guitarra, a guitarra baixo, o trompete, a flauta, o piano, o órgão e o acordeão compõem um conjunto que resulta instrumentalmente perfeito e ajustado às intenções dos poemas».
Aproveitando a deixa desta citação, refira-se ainda outro elemento crucial no Cantigas do Maio – os poemas.
Tirando a Ronda das Mafarricas (de António Quadros) e Milho Verde (um tradicional), todas as restantes sete canções têm letras de José Afonso.
E que letras! Umas são de tom surrealista (Senhor Arcanjo, que sob este ângulo de visão, se junta a Ronda das Mafarricas), outras «copiam» os modos da poesia popular tradicional (Cantigas do Maio), outras denunciam a violência assassina da ditadura (Cantar Alentejano, sobre o homicídio de Catarina Eufémia), outras sobre a condição camponesa (A Mulher da Erva, para além do já citado Milho Verde), outras de apelo à luta (Maio Maduro Maio e Coro da Primavera) e outras sobre a narração de uma sociedade solidária (Grândola, Vila Morena).
Sim, depois há Grândola Vila Morena, que em cima de tudo o que já foi dito sobre o álbum Cantigas do Maio junta a carga emocional e política de ter sido a senha escolhida para sinal a transmitir, via rádio, de início das movimentações militares que derrubariam a ditadura – a mobilização popular durante a Revolução dos Cravos teria sido certamente muito diferente se o seu hino não cantasse uma «terra da fraternidade», como anuncia o segundo verso desta canção.
A pequena homenagem que se propõe fazer a este disco específico, nesta Festa do Avante! (que tem a felicidade de se juntar à recente homenagem que a RTP fez à obra de José Afonso, através de um documentário e do espectáculo Cantinho do Zeca) identifica claramente um dos expoentes da criação musical portuguesa.
Não, não foi por acaso que em 1978, sete anos depois do seu lançamento, Cantigas do Maio seria eleito por um júri de 25 críticos, reunidos pelo semanário especializado em música, o jornal Se7e, como Melhor Álbum de Sempre da Música Popular Portuguesa.