Coexistir

Gustavo Carneiro

Da nossa parte, há sempre uma boa jus­ti­fi­cação para a guerra, para a ocu­pação, para a opressão. O outro, o ini­migo, é vi­o­lento, ame­a­çador, bár­baro, atra­sado, mas a nossa missão é sempre justa, pa­ci­fi­ca­dora, de­fen­siva e ci­vi­li­za­dora. Se o ini­migo co­mete crimes, nós apenas pro­vo­camos la­men­tá­veis danos co­la­te­rais.

Estes são apenas al­guns dos traços da pro­pa­ganda de guerra iden­ti­fi­cados pelo aris­to­crata in­glês Arthur Pon­sonby no res­caldo da Pri­meira Guerra Mun­dial e ainda hoje vi­sí­veis na ofen­siva ide­o­ló­gica que sempre acom­panha a acção des­trui­dora do im­pe­ri­a­lismo e do si­o­nismo. Mas há ainda outro traço, igual­mente ac­tual: quem dis­cordar, ou sim­ples­mente du­vidar, dessa pro­pa­ganda é an­ti­pa­trió­tico, traidor, aliado do ini­migo. No caso da ocu­pação da Pa­les­tina, é também anti-se­mita.

Tal pro­pa­ganda, am­pli­fi­cada pelos ex­tra­or­di­ná­rios meios hoje dis­po­ní­veis, sempre faz o seu ca­minho. Mas há, como sempre houve, quem lhe re­sista. Em Is­rael, por exemplo, são cada vez mais.

Há dias, passou por Por­tugal uma ex­po­sição in­ti­tu­lada Bre­a­king the Si­lence (Rom­pendo o Si­lêncio), pro­mo­vida pela as­so­ci­ação com o mesmo nome, com­posta por an­tigos sol­dados is­ra­e­litas que cum­priram ser­viço mi­litar nos ter­ri­tó­rios pa­les­ti­ni­anos ocu­pados e aí se tor­naram crí­ticos dessa mesma ocu­pação. Com­pre­en­deram pela sua pró­pria ex­pe­ri­ência que co­locar um povo in­teiro em ca­ti­veiro não é pro­tegero seu país e que as rusgas aos do­mi­cí­lios, as de­ten­ções ar­bi­trá­rias e as hu­mi­lha­ções quo­ti­di­anas de pa­les­ti­ni­anos não são ac­ções de­fen­sivas. É hoje para eles evi­dente que o as­sas­si­nato de cri­anças em Gaza, sob os bom­bar­de­a­mentos, não é e nunca será uma via para a paz. E que as mortes, mesmo as is­ra­e­litas, são re­sul­tado da ocu­pação e da vi­o­lência por esta ge­rada.

Mas estes an­tigos sol­dados não estão sós. Desde 1982 que a Yesh Gvul (Há um li­mite, em he­braico) apoia po­lí­tica e ju­ri­di­ca­mente os mi­lhares de mi­li­tares que se re­cusam a servir nos ter­ri­tó­rios pa­les­ti­ni­anos ocu­pados e na agressão a ou­tros países e que, por isso, so­frem re­pre­sá­lias, que chegam por vezes à prisão. A B’T­selem mo­ni­to­riza e de­nuncia as vi­o­la­ções dos di­reitos hu­manos co­me­tidas pelo Es­tado de Is­rael (da ex­pulsão de po­pu­la­ções à se­gre­gação, das de­ten­ções ad­mi­nis­tra­tivas às tor­turas) e o ICAHD foca-se nas de­mo­li­ções de casas pa­les­ti­ni­anas, que desde 1947 ul­tra­passam as 130 mil. A Paz Agora! or­ga­nizou os re­centes pro­testos em Te­la­vive e nou­tras ci­dades.

À se­me­lhança do Par­tido Co­mu­nista de Is­rael, ne­nhuma destas or­ga­ni­za­ções é anti-se­mita ou pre­tende apagar o seu país do mapa. Sim­ples­mente sabem que só há paz com jus­tiça e que não é livre um povo que oprime ou­tros povos.

O mundo move-se!




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