A cartilha

Gustavo Carneiro

Instituiu-se há tempos, no atribulado meio do comentário futebolístico nacional, o termo cartilha, para designar a prática de disseminação sistemática e organizada de uma determinada narrativa, previamente definida mas apresentada como sendo a opinião de cada um dos comentadores e articulistas. Não há como saber se a acusação tem fundamento, e neste caso talvez nem seja assim tão importante. Mas o que parece evidente é a existência de muitas cartilhas a circular nos jornais, rádios e televisões da nossa praça (e não só) e sobre questões bem mais sérias.

Torna-se difícil encontrar outra explicação para o recurso constante à expressão «conflito» para explicar o que mais uma vez se passou na Faixa de Gaza. Não seriam «massacre» ou «barbárie» conceitos bem mais apropriados para descrever bombardeamentos sucessivos sobre populações civis, amontoadas num território exíguo de onde não podem sair? Sobretudo sabendo-se que os mísseis visaram habitações, escolas, bibliotecas, serviços de saúde, centrais energéticas ou agências noticiosas e que provocaram a morte de dezenas de crianças...

E que outra justificação haverá para a insistência na tese da «guerra» Israel versus Hamas, quando não seria assim tão difícil saber que a ocupação da Palestina antecede em décadas a criação deste partido e que a violência dos ocupantes recai sobre todo o povo palestiniano e as várias facções da resistência? Como se fossem do Hamas os habitantes de Jerusalém Oriental expulsos das suas casas para que estas sejam, depois, entregues a colonos israelitas. Ou os agricultores de Belém, que viram as suas terras ficar do lado errado do muro e que por isso perderam o direito a elas. Ou ainda os milhares de palestinianos presos em Israel – sem julgamento, sem defesa, sem nada –, muitos dos quais crianças...

Entre constantes referências ao carácter islamita do Hamas, parece não haver quem se lembre que os sionistas justificam a ocupação da Palestina com alegados direitosgarantidos por Deus ao povo escolhido. E como sustentar a tese de que Israel é a única democracia do Médio Oriente quando é a sua própria lei que consagra o país como lar nacional do povo judeu e reconhece a existência de cidadãos de primeira e de segunda? Já a permanente evocação do direito de Israel a existir – outro item da mais que certa cartilha – oculta um certamente pequeno pormenor: é o Estado da Palestina que continua sem existir, mais de sete décadas após ter sido consagrado pelas Nações Unidas.

Desmascarar esta cartilha é essencial para revelar a verdadeira natureza (colonial, xenófoba, brutal) da ocupação da Palestina e uma boa ajuda para lhe pôr fim.




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