Vão ver

Anabela Fino

«Ditadura não, Liberdade sim» foi o lema da manifestação promovida este sábado pela World Wide Rally for Freedom and Democracy, estrutura em que participam as organizações não-governamentais Somos Humanidade, Defender Portugal e Habeas Corpus, contra as medidas restritivas devido à COVID-19 e o que dizem ser a «tirania» da vacinação.

A organização é frequentemente associada ao movimento Qanon, defensor de uma teoria da conspiração de extrema-direita e conhecido por advogar a ideia de que Donald Trump é o salvador do mundo, criado em 2017 na Internet por um utilizador anónimo que utiliza sempre a letra Q para se identificar e se auto-intitula um «oficial norte-americano». Elucidativo.

Teorias da conspiração à parte, o que não significa subestimar o assunto, é com enorme perplexidade que se vê umas centenas de pessoas, das mais diversas idades, rejeitar a «ditadura», como se nela vivessem, e clamar por «liberdade».

Dando de barato o facto incontestável de livremente se terem manifestado, insanável contradição com a pretensa ditadura, ocorre perguntar se os que se manifestaram alguma vez pararam, uns minutos que fosse, a investigar o que é uma ditadura. Não é preciso ir longe: vivemos no país que detém o triste recorde de ter sido a mais longa ditadura da história moderna da Europa Ocidental: 48 anos, entre 1926 e 1974, quase meio século.

Ainda nem passaram 50 anos e já a banalização da palavra lhe branqueia o significado. Como se ditadura nada tivesse a ver com opressão, repressão, tortura, morte, polícia política, prisões, campos de concentração, trabalho sem direitos, machismo, racismo, misogenia, censura, silêncio, medo até da própria sombra, a suspeita dos vizinhos, a voz sempre presa na garganta, livros sonegados, filmes proibidos, canções silenciadas, horizontes sem futuro e futuro sem horizontes...

Como se ditadura fosse um contratempo, uma contrariedade, uma chatice, um aborrecimento... Estão a ver? Estes ditadores não percebem que «tenho direito a escolher os riscos que quero correr», como pela manifestação se disse, clamando «sim à verdade, liberta-te», que vírus sempre houve e a pandemia é uma invenção, mostrem lá as provas de que morreu gente por causa disso.

Gente a desfilar em Lisboa sob o lema «Ditadura não, Liberdade sim», 47 anos depois do derrube do fascismo em Portugal; 48 anos depois do assassinato de Salvador Allende e a instauração da ditadura de Pinochet no Chile; 57 anos depois do golpe militar no Brasil que megulhou o país numa ditadura durante 21 anos, só para citar casos que nos foram próximos, enquanto na Palestina se morre na maior prisão do mundo a céu aberto, mostra que há quem precise urgentemente de uma lição de História, de ir ver o que foi a ditadura, o que foi o fascismo. Para aprender a respeitar a Liberdade




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