«Mundo de baixo» e «mundo de cima»

Filipe Diniz

Uma notícia do Guardian (27.05.2021) merece ser partilhada. Acrescenta alguma coisa ao que já se sabe sobre o capitalismo financeirizado, e de caminho ilustra o beco sem saída a que conduz o beato «europeísmo» daquele jornal – e de todos os «europeístas» semelhantes.

Está em curso em Itália o mega julgamento da Ndrangheta, uma organização mafiosa do sul, reputada como uma das mais ricas e temidas organizações criminosas no mundo. Um estudo de 2013 estimava que o seu poder financeiro era superior ao do Deutsche Bank e McDonald’s em conjunto, com um rendimento anual de 53 milhares de milhões de euros. Atribuía-se o segredo deste sucesso à sua capacidade de ligar aquilo que o Guardian designa como o «mundo de baixo» com o «mundo de cima» – com este termo a designar Londres em concreto. No decurso da última década, a Ndrangheta lavou na City (ou seja, num dos principais polos do sistema financeiro do capitalismo) milhares de milhões de euros.

Não é novidade. Está mais do que identificada a estreita inserção das grandes redes do crime organizado na estrutura global do imperialismo. Não há muito um alto funcionário do departamento da ONU que acompanha as questões do branqueamento de capitais opinava que foi sobretudo o dinheiro dos cartéis da droga que salvou numerosos bancos face à crise financeira de 2008.

Impressiona entretanto o que o Guardian quer fazer passar acerca dessa estreita articulação entre os mundos “de baixo e de cima” e das formas de lhe dar combate. Acha que o problema ficou mais difícil com o Brexit. Só falta ver na UE um bastião contra tal circulação e branqueamento de capitais. Nem sequer os preocupa contradizer o que o artigo relata: que esse processo floresceu com a Grã-Bretanha dentro da UE, não fora dela.

Não custa admitir que tenha também pesado no Brexit alguma contradição entre a City e outros centros da finança. Mas não terá sido decerto sobre a origem dos dinheiros que movimentam, que aliás não passam só pela City. O problema não tem fronteiras dentro e fora da UE, e Lénine já o apontava: «o capitalismo, na sua fase imperialista, conduz à socialização integral da produção nos seus mais variados aspectos.» Na sua extrema degradação actual, inclui a socialização do crime organizado.




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