O conselho
Aconselhava-nos Brecht, há décadas, a desconfiarmos do «mais trivial, na aparência singelo». Dizia-nos ainda o poeta e dramaturgo alemão que em tempos de arbitrariedade consciente e de humanidade desumanizada nada deveria parecer normal. Aceitemos o conselho (bastante actual, reconheça-se) e acrescentemos ao rol de desconfianças tudo o que hoje surja rotulado de verde, moderno, digital ou social – palavras mágicas capazes de transformar as situações mais abjectas ou inúteis em algo digno de elogio. Alguns exemplos:
1. O recente encerramento da refinaria da Galp em Matosinhos, apresentado num embrulho verde, provocará a extinção de centenas ou mesmo milhares de postos de trabalho directos e indirectos. Entretanto, o País continua a precisar de alcatrão, óleos base ou aromáticos, que passará a comprar no estrangeiro, agravando défices e acrescentando aos impactos ambientais da produção os do transporte. Ganhos para o ambiente? Nenhuns! Para o País? Idem! Já para os accionistas será seguramente outra conversa…
2. Em Odemira como um pouco por todo o Alentejo, milhares de pessoas vivem e trabalham em condições desumanas em explorações agrícolas que eram, ainda há pouco, o expoente máximo da modernidade, com brand e CEO (ah, desconfiemos também dos estrangeirismos), milhões de fundos públicos e frequentes visitas de cortesia por parte de governantes e candidatos a governantes. Afinal, vai-se a ver e pouco mais são do que os velhos latifúndios, assentes na máxima exploração da energia de quem neles trabalha e, desta feita, também dos solos e recursos hídricos.
3. Com o surto epidémico e os sucessivos confinamentos, ganharam ainda maior protagonismo empresas – ou plataformas digitais, ou apps, o nome é à escolha– como a Uber Eats e a Glovo, de entrega de refeições ao domicílio, encomendadas e pagas comodamente através de telemóvel ou computador. Tudo muito prático e digital, à excepção das condições de trabalho dos entregadores: sem quaisquer vínculos ou direitos, contratados ao serviço e mal pagos, sujeitos à arbitrariedade doalgoritmo, capataz sem rosto das novas praças de jorna.
4. Terminou há dias, no Porto, uma cimeira da União Europeia apelidada de social, onde desfilaram promessas de reformas, transições emedidastambém elasmuito sociais. Nas entrelinhas, porém, o mesmo de sempre: salários e direitos nivelados por baixo, normalização do que hoje são flagrantes ilegalidades patronais, mais injustiças e desigualdades.
Voltemos a Brecht, que nos deixou ainda outro conselho: nada deve parecer impossível de mudar, como aliás bem sabem os milhares que no sábado se manifestaram no Porto contra essa coisa velha e suja que é a exploração.