Pulguedo

Anabela Fino

 Ah, se a hipocrisia pagasse imposto! Qual dívida pública, qual quê! Nem saberíamos o que fazer a tanto dinheiro arrecadado.

Sempre que algum escândalo rebenta cá no burgo é vê-los, aos hipócritas, a saltar de todos os lados. Parecem pulgas em lombo de cão vadio em hora de coceira...

É o que está a acontecer com o «caso Odemira», onde um surto de COVID-19 trouxe para a ribalta o que todos sabiam e (quase) ninguém queria saber e hoje (quase) toda a gente faz de conta que desconhecia. Um horror, uma vergonha, um escândalo, uma ignomínia, um opróbrio... Os adjectivos sucedem-se ao ritmo da verborreia dos protagonistas apanhados no local do crime ou que para ele convergem atraídos como moscas para os holofotes mediáticos.

No litoral alentejano como no Alentejo interior ou no Algarve há milhares de trabalhadores a viver em condições sub-humanas, explorados, escravizados até. Estão há anos à vista de todos, mas ninguém parece saber ao certo quantos são. O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras fala em 9615 imigrantes legais; o presidente da Câmara diz que são 13 mil; o Movimento Juntos pelo Sudoeste garante que no pico das colheitas as necessidades da região ascendem a 15 000 trabalhadores. O sector agrícola, representado pela Associação dos Horticultores, Fruticultores e Floricultores de Odemira e Aljezur, faz-se de morto, deixando ao CDS e ao Chega a defesa da sua sardinha, pois como é por demais evidente nada tem a ver com os salários de miséria e a hipersobrelotação das habitações, e certamente nunca ouviu falar em tráfico de pessoas, auxílio à imigração ilegal e angariação de mão-de-obra ilegal.

O Governo também não sabia de nada, tal como a Presidência da República, sempre tão bem informada, pelos vistos escapou-lhe esta. Valha-nos a Santa COVID que veio pôr em pratos limpos a suja realidade com que tantos conviviam e tão poucos afinal conheciam.

Fazendo jus ao dito de que não há fome que não dê em fartura, eis que António Costa reconheceu que «alguma população vive em situações de insalubridade habitacional inadmissível», com «risco enorme para a saúde pública, para além de uma violação gritante dos direitos humanos», pelo que o Governo lá acordou para o assunto e impôs uma cerca sanitária às freguesias afectadas, enquanto anda numa roda viva à procura de local para alojar os que por via da pandemia viram reconhecida a sua humana condição.

Entretanto, em Belém, prepara-se uma presidência aberta, coisa que cai sempre bem.

De responsabilidades das entidades empregadoras não se fala, como não se fala das leis que permitem salários de miséria, da inspecção às condições de trabalho que escasseia ou das ridículas penalizações que fazem com que o crime compense.

Até ao próximo vírus e a mais uma ronda de pulgueda indignação.




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