O óbvio
Que importa o bombardeamento à Síria, por si ordenado poucas semanas após ter tomado posse? Que mal tem a confirmação das sanções contra a Venezuela, que privam esse país de valiosos recursos (que lhe pertencem!) e o seu povo de bens e serviços de primeira necessidade? Qual o problema das ameaças directas à China e à Rússia, que elevam a patamares críticos a já sensível tensão internacional? Joe Biden é a estrela do momento e não há artigo ou noticiário, nos órgãos do costume, que não lhe gabe os feitos, por mais imperceptíveis que estes sejam.
Melhor só mesmo Obama, a quem foi atribuído um Prémio Nobel da Paz logo nos seus primeiros dias enquanto presidente dos Estados Unidos... Que nos anos seguintes se tenha fartado de bombardear e agredir países e povos é algo aparentemente irrelevante para os media dominantes.
Até Augusto Santos Silva (ASS) veio saudar a nova fase aberta pela administração Biden – ele, de quem nada se conhece para além da mais vergonhosa submissão face a Trump. Não foi Portugal um dos primeiros Estados a reconhecer o fantoche Guaidó? Não se prestou o Governo do PS a receber o encontro de Pompeo com Netanyahu, no qual terá sido acertado o assassinato no general iraniano Qassem Soleimani? Disse ASS alguma coisa acerca do golpe do lítio, que depôs Evo Morales? Tomou alguma medida quando o embaixador norte-americano fez uma série de ameaças ao País relativas a opções económicas e comerciais que deveriam ser soberanas? Nada! Apenas sorrisos dóceis e juras de fidelidade, reiteradas agora ao novo inquilino da Casa Branca. Reconheça-se ao menos esta sua (lamentável) coerência...
Todo o foguetório mediático e político em torno de Biden, por mais belicista que este seja e talvez até precisamente por o ser, contrasta com o apagamento de tudo o que se oponha à sanha de domínio global do imperialismo norte-americano. Foi o que aconteceu recentemente com a iniciativa de alguns países (como Cuba, Venezuela, Síria, Rússia ou China) de constituir uma coligação internacional em defesa da Carta das Nações Unidas, contra a aplicação unilateral de sanções e a ameaça do uso da força nas relações internacionais.
O que diz a Carta? Apela à manutenção da paz e da segurança, defende a solução pacífica das controvérsias, propõe o desenvolvimento de relações amistosas entre nações, baseadas no respeito pelo princípio de igualdade de direitos e de autodeterminação dos povos.
Voltamos à questão que Bertolt Brecht se colocava há quase um século: que tempos são estes em que é preciso defender o óbvio?