Ai aguenta, aguenta – parte 2
«É preciso relativizar o confinamento. ‘Mal estão os que morrem e os que estão nos cuidados intensivos’. Para os restantes ‘é uma experiência’, que vai passar e que pode não deixar tantas marcas negras como vaticinam os mais pessimistas» - quem escreveu a pérola foi Rosália Amorim, directora do Diário de Notícias, no editorial de sábado. «Se as crianças aguentam?», perguntava a directora no título, para concluir que sim, que são muito resilientes, fortes e arrancam sorrisos em todas as circunstâncias.
O editorial do DN, podendo gerar incredulidade, na verdade não é muito original. Descende de uma longa linhagem de lugares comuns com que somos brindados regularmente: o que não nos mata faz-nos mais fortes, as crises trazem oportunidades, podia ser pior, pelo menos não morremos. Ai aguenta, aguenta, como dizia o banqueiro Ulrich sobre se Portugal aguentava mais austeridade.
Desvalorizar todos os impactos da crise social e económica que o nosso País atravessa porque não são nem a morte nem os cuidados intensivos é um argumento desonesto. Está ao nível de responder a quem reivindica melhores condições de vida com comparações com campos de refugiados – como de resto já ouvimos no tempo das troikas. Combata-se o vírus com todos os meios necessários, evitem-se todas as mortes evitáveis. Mas classificar as consequências económicas, sociais, físicas e psicológicas do confinamento, em particular das crianças, como uma «experiência» é inaceitável.
Com certeza que há elites tão privilegiadas que o confinamento não é muito diferente do quotidiano. Mas para a esmagadora maioria dos trabalhadores, do povo, das crianças, não é assim. A doença, o desemprego, a perda de salário e rendimentos, a pobreza, o isolamento, a falta da escola, dos amigos e da família, não são uma «experiência». São a vida real, com problemas e impactos reais, que têm de ser evitados e combatidos.