O velho e o novo

Gustavo Carneiro

«A crise con­siste pre­ci­sa­mente no facto de que o velho está a morrer e o novo ainda não pode nascer. Nesse in­ter­regno, uma grande va­ri­e­dade de sin­tomas mór­bidos apa­rece». A afir­mação de An­tonio Gramsci, pro­fe­rida nas pri­meiras dé­cadas do sé­culo XX, ganha hoje fla­grante ac­tu­a­li­dade, à me­dida que se apro­funda a crise do ca­pi­ta­lismo e, com ela, (res)surgem muitos destes sin­tomas.

Em 2019, 26 ca­pi­ta­listas con­cen­travam uma ri­queza equi­va­lente à da me­tade mais pobre da po­pu­lação mun­dial, ou seja, 3,8 mil mi­lhões de pes­soas. Se a cada dois dias surgia um novo mul­ti­mi­li­o­nário, essa mesma me­tade perdia di­a­ri­a­mente 500 mi­lhões de dó­lares. No mesmo mundo em que al­guns têm for­tunas su­pe­ri­ores à ri­queza criada anu­al­mente por países in­teiros, 2,2 mil mi­lhões de seres hu­manos con­ti­nuam sem acesso a água po­tável.

Em 2018, es­tima a UNESCO, 20 mi­lhões de cri­anças não foram va­ci­nadas contra o sa­rampo, a dif­teria e o té­tano. Já os gastos mi­li­tares, não cessam de au­mentar, atin­gindo má­ximos his­tó­ricos: em 2020, os EUA des­ti­naram para o sector a maior verba de sempre, su­pe­rior a 738 mil mi­lhões de dó­lares, perto de duas vezes e meia o PIB de Por­tugal e bem mais de 30% do total das des­pesas mi­li­tares mun­diais. É este o mesmo país que de­pois de aban­donar a UNESCO fez re­cen­te­mente o mesmo com a Or­ga­ni­zação Mun­dial de Saúde.

Nos úl­timos anos, mais de 16 mil pes­soas, fu­gindo das guerras pro­mo­vidas pelas po­tên­cias oci­den­tais em África e no Médio Ori­ente, mor­reram no Mar Me­di­ter­râneo quando ten­tavam en­trar na Eu­ropa For­ta­leza. Muitas ou­tras (entre elas mi­lhares de cri­anças) são man­tidas em campos de re­fu­gi­ados sem con­di­ções ou en­tram em redes de trá­fico hu­mano, seja la­boral ou se­xual. Nesta mesma Eu­ropa, res­surgem os sau­do­sistas de Hi­tler, Mus­so­lini e Sa­lazar, há par­tidos co­mu­nistas proi­bidos e quem re­clame o con­fi­na­mento es­pe­cial para ci­ganos. Do outro lado do Atlân­tico, nos EUA ou no Brasil, o au­mento da ex­plo­ração é acom­pa­nhado da in­ten­si­fi­cação do ra­cismo e da xe­no­fobia, da re­pressão e do obs­cu­ran­tismo.

Ao con­trário do que al­guns in­ge­nu­a­mente (?) pre­viram, tudo se agravou com a pan­demia. En­quanto mi­lhões de norte-ame­ri­canos (e não só) caíam no de­sem­prego, re­cor­riam à ajuda ali­mentar e, aos mi­lhares, mor­riam de COVID-19, um pu­nhado de mi­li­o­ná­rios via as suas ri­quezas au­mentar em largas cen­tenas de mi­lhares de mi­lhões de dó­lares... Também por cá, grandes em­presas dis­tri­buem di­vi­dendos e re­correm a apoios pú­blicos ao mesmo tempo que des­pedem, des­re­gulam ho­rá­rios, cortam sa­lá­rios.

Vi­vemos tempos pe­ri­gosos e exi­gentes. A his­tória e a vida já mos­traram quão mór­bidos e dra­má­ticos podem ser os sin­tomas de um ca­pi­ta­lismo ago­ni­zante. A luta aí está, acesa, até que o novo se im­ponha.




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