EUA – A questão central

Ângelo Alves

A discriminação racial reside no sistema dominante nos EUA

As manifestações nos EUA intensificam-se após mais uma morte de um cidadão norte-americano negro, Rayshard Brooks, com dois tiros nas costas disparados pela polícia de Atlanta. A explosão de revolta e indignação à escala de massas na principal potência imperialista merece uma profunda análise. Pela sua dimensão e impacto na situação política interna dos EUA; pelas suas repercussões internacionais; e pelas instrumentalizações e manobras de que já está a ser alvo, dentro e fora dos EUA.

Os casos de George Floyd e de Rayshard Brooks estão longe de ser inéditos. Resultam da consolidação de um círculo vicioso e sistémico de exploração, discriminação e violência que é acompanhado de lógicas securitárias, militaristas e repressivas instituídas, fomentadas e defendidas pelas sucessivas administrações norte-americanas. O facto de os acontecimentos terem adquirido os actuais contornos de uma revolta generalizada é inseparável da profunda crise económica e social que se vinha mascarando há vários anos e que agora explodiu no contexto da criminosa gestão do surto epidémico da COVID-19 nos EUA, afectando de forma insuportável as classes e camadas mais massacradas pelo desemprego, pela pobreza, pela fome, pela exclusão social e pela crescente falta de perspectivas.

É fundamental perceber que a razão de fundo da discriminação racial reside no sistema social, económico e político dominante naquele país. É aí que têm origem as profundas injustiças e desigualdades sociais que caracterizam a sociedade norte-americana e que se mantém a guetização sistémica que marginaliza e reprime as camadas mais exploradas da população e «protege» as elites dominantes.

É por isso que é fundamental alertar para duas questões.

A primeira é que a discriminação racial é um instrumento da exploração e opressão de classe que tem raízes históricas no desenvolvimento dos sistemas de exploração e opressão e que tem o duplo papel de acentuar mecanismos de exploração e de promover a divisão no seio dos explorados e oprimidos. Centrar os acontecimentos exclusivamente numa questão racista, ou de reminiscência colonial, é redutor, descentra da questão central, pode promover divisões e em última análise alimenta os objectivos da classe dominante, em particular da extrema-direita.

A segunda é que o sistema político das «duas cabeças» nos EUA já age para neutralizar e instrumentalizar o movimento popular. Num jogo de espelhos, democratas e republicanos multiplicam manobras. O Partido Democrata, que já envolveu a sua empresa de angariação de fundos no movimento Black Lives Matter, e que é responsável por decisões anteriores que estão na origem da violência policial, tenta capturar o movimento, não tocando nas causas da situação e centrando-se numa «reforma policial». Por sua vez, Trump surfa e alimenta a violência para tentar recuperar terreno eleitoral por via de uma radicalização em torno da segurança, da «Lei e da Ordem». Com diferenças, e apesar de em aberto confronto, uns e outros são protagonistas do sistema que explora, reprime e oprime aqueles que estão na rua. Ter a percepção desta questão essencial é o factor que pode fazer emergir destes acontecimentos um caminho novo de enorme esperança para o povo dos EUA e para todo Mundo.




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