EUA, declínio e luta

Albano Nunes

A dimensão das manifestações é uma expressão mais da profunda crise que grassa nos EUA

A onda de protestos que tem percorrido os EUA de ponta a ponta tem um significado muito profundo. Condenando o racismo e a violência policial e exigindo justiça perante o vil assassinato de George Floyd, os manifestantes – de todas as cores e etnias, de todas as idades, mas sobretudo jovens – estão a condenar uma ordem social profundamente injusta e desumana, a expor perante o mundo a mentira e a podridão da «democracia americana» e a pôr em causa o próprio sistema de exploração capitalista.

Nas maiores mobilizações populares desde o assassinato de Martin Luther King e da luta contra a guerra no Vietname dos anos sessenta, milhões enfrentam nas ruas a violência repressiva, rompem com o recolher obrigatório, e mesmo perante as prisões diárias de milhares de manifestantes, clamam com veemência crescente por mudanças de fundo que eliminem as causas do racismo. Perante os perigos que a política agressiva do imperialismo faz pairar sobre a Humanidade é particularmente estimulante confirmar que também no coração da mais poderosa potência capitalista há resistência e luta e que, pesem embora todas as incertezas e dificuldades em construir uma alternativa ao férreo domínio do partido bicéfalo de Republicanos e Democratas, é cada vez mais evidente que se os de cima ainda podem, se alarga o campo dos que debaixo já não querem.

De facto estamos perante uma expressão mais da profunda crise que grassa nos EUA, e do declínio histórico do imperialismo norte-americano. Declínio que sendo geralmente reconhecido no plano das relações internacionais (mesmo os apologistas dos EUA como potência indispensável já falam do fim do século americano), o surto epidémico veio tornar mais visível no plano interno, ao expor com a maior crueza as profundas injustiças e desigualdades da sociedade norte-americana com o seu cortejo de milhões e milhões de desempregados, de pobres, de sem abrigo e as impressionantes filas de quilómetros para a sopa dos pobres.

Foi sobre este pano de fundo que o assassinato de Georg Floyd constituiu a gota de água que, de Mineápolis, levou a indignação e a revolta a espalhar-se por centenas de cidades dos EUA, incluindo Washington.

A resposta incendiária de Donald Trump à extraordinária dimensão, persistência e combatividade da mobilização popular – acusando antifascistas e forças de esquerda de terroristas e ameaçando com a intervenção do Exército, ao mesmo tempo que se fazia fotografar exibindo a Bíblia – tem sem dúvida muito de cálculo eleitoral. É, porém, bem mais do que isso. É expressão da opção política de uma importante fracção da classe dominante norte-americana que, instalada ao mais alto nível do poder, alimenta e protege o racismo e o fascismo.

O perigo que tal representa para o mundo, quando o imperialismo norte-americano recorre a todos os meios para tentar manter uma hegemonia planetária que lhe escapa, é muito grande. Esta é uma razão mais para que saudemos e expressemos a nossa activa solidariedade para com a justa luta dos trabalhadores, da juventude e do povo norte-americano.




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