Democracia

Gustavo Carneiro

Será a mera existência de partidos políticos garantia de democracia? É democrático um Estado que não garante a todos, em condições igualdade, os direitos à saúde, à educação, à habitação, ao trabalho? Existe verdadeira democracia sem a participação consciente e empenhada dos cidadãos na tomada das decisões que lhes dizem respeito? Poder-se-á falar de democracia quando governos se limitam a servir os interesses dos monopólios, pondo até em causa a saúde das populações? Haverá apenas uma forma aceitável de democracia, válida para todos os locais e tempos?

Surgida há 2500 anos em Atenas, a democracia [o governo do povo] alternou com a monarquia, a oligarquia e a tirania como forma de exercício do poder naquele tempo e espaço concretos. Na democracia ateniense, os cidadãos votavam as leis, controlavam os diferentes poderes, decidiam da guerra e da paz. Contudo, eram cidadãos uma ínfima minoria da população, cerca de 10%: as mulheres, os estrangeiros e os escravos não gozavam de qualquer direito político.

Também no auge do capitalismo liberal, desde logo na Grã-Bretanha, o voto censitário limitava o universo de eleitores aos homens burgueses, proprietários e funcionários, deixando sem qualquer representação (e sujeitando-os muitas vezes à mais brutal repressão) a imensidão de operários, camponeses, mulheres e povos colonizados do vasto império onde o Sol nunca se punha. Nos Estados Unidos da América, o Congresso e o Senado conviveram durante décadas com a escravatura nos campos de algodão e, depois da abolição, com perseguições e linchamentos públicos de negros, muitas vezes com direito a bilhete pago.

De um lado e do outro do Atlântico, o poder político era exercido exclusivamente pela burguesia e os diferentes partidos representavam, quanto muito, diferentes sectores da classe dominante (mercantil, industrial, escravista), ou não fosse a contradição uma das principais características do capitalismo. É este o ADN da democracia burguesa ocidental.

Mas com o avanço da História – que, como Marx e Engels mostraram, se deve à luta de classes – a democracia foi ganhando novas formas, conteúdos e significados: o sufrágio universal, o voto feminino, a participação eleitoral dos partidos comunistas, operários e progressistas foram conquistas dessa mesma luta, assim como o foi – e é – a extensão da democracia às dimensões económica, social e cultural.

O conceito de democracia – limitada à sua expressão política e ao seu aspecto formal ou entendida efectivamente como poder do povo, pelo povo e para o povo, em benefício da maioria – está há muito no centro da luta de classes, assumindo hoje em todo o mundo uma particular acuidade.

Olhando à nossa volta, quem defende o quê?




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