Defender a ADSE da gula do grupos privados

Jorge Pires (Membro da Comissão Política)

Em en­tre­vista re­cente, a mi­nistra da Mo­der­ni­zação do Es­tado e da Ad­mi­nis­tração Pú­blica as­sumiu, de forma inequí­voca, que o Es­tado devia sair da ADSE e que o fu­turo da ins­ti­tuição passa pela sua mu­tu­a­li­zação.

A ADSE é dos seus be­ne­fi­ciá­rios e não dos grupos pri­vados

Nada de novo nestas afir­ma­ções. Já no início da an­te­rior le­gis­la­tura, o Go­verno do PS avançou com a pos­si­bi­li­dade da trans­for­mação da ADSE numa As­so­ci­ação Mu­tu­a­lista, o que foi de ime­diato re­jei­tado pelos re­pre­sen­tantes dos tra­ba­lha­dores da Ad­mi­nis­tração Pú­blica e or­ga­ni­za­ções de pen­si­o­nistas. Mesmo não sendo esta a so­lução do agrado do Go­verno, este lá criou o Ins­ti­tuto de Pro­tecção e As­sis­tência na Do­ença (ADSE, IP), as­su­mindo-o, porém, como so­lução tran­si­tória.

Desde então, tem-se as­sis­tido à con­cre­ti­zação de uma es­tra­tégia de de­gra­dação da imagem da ADSE pe­rante os be­ne­fi­ciá­rios e, si­mul­ta­ne­a­mente, apro­fun­da­mento de uma re­lação pouco clara com os grandes pres­ta­dores pri­vados. Por um lado, o Go­verno im­pede a con­tra­tação dos cerca de 80 tra­ba­lha­dores em falta no quadro, não per­mite o alar­ga­mento dos be­ne­fi­ciá­rios aos tra­ba­lha­dores da Ad­mi­nis­tração Pú­blica com con­tratos in­di­vi­duais de tra­balho (fun­da­mental para ga­rantir a sua sus­ten­ta­bi­li­dade) e, através dos seus re­pre­sen­tantes na di­recção, não as­sume uma re­lação clara e de­ter­mi­nada na de­fesa dos in­te­resses da ADSE, com os grupos pri­vados.

Cerca de 650 mil do­cu­mentos de des­pesa en­tre­gues no Re­gime Livre da ADSE pelos be­ne­fi­ciá­rios (re­pre­sen­tando de­zenas de mi­lhões de euros) estão por pagar, a mai­oria há meses, de­vido à falta de tra­ba­lha­dores para os pro­ces­sarem. Já os grandes pres­ta­dores ainda hoje não de­vol­veram os mais de 60 mi­lhões de euros que fac­tu­raram a mais e re­ce­beram in­de­vi­da­mente, ao longo dos úl­timos quatro anos.

É neste con­texto que a en­tre­vista da mi­nistra cria uma grande ins­ta­bi­li­dade entre be­ne­fi­ciá­rios e tra­ba­lha­dores da ADSE, ao mesmo tempo que abre uma dis­cussão que pro­cura fa­vo­recer os grupos pri­vados a atin­girem o ob­jec­tivo de con­tro­larem a ins­ti­tuição.

Mas será esta a única con­sequência deste pro­cesso que visa fa­vo­recer os grupos de in­te­resses ins­ta­lados no ne­gócio da saúde? Será apenas coin­ci­dência o facto da en­tre­vista surgir numa al­tura em que o SNS é alvo de uma ofen­siva como nunca tí­nhamos as­sis­tido?

Teses e pro­postas

Há muito que os arautos do pri­mado do pri­vado na saúde vêm de­sen­vol­vendo teses como «o País não tem di­nheiro para manter um SNS como o que está ins­ti­tu­ci­o­na­li­zado» ou «os pri­vados fazem me­lhor e mais ba­rato» – que não só não se con­firmam como a vida tem mos­trado que os grupos eco­nó­micos li­gados à saúde olham para ela apenas como um grande ne­gócio.

O que está em marcha desde há muito, onde se in­cluem as al­te­ra­ções de­fen­didas para a ADSE, são peças im­por­tantes de um puzzle que, a ser ter­mi­nado, daria origem à cri­ação de um sis­tema de saúde em Por­tugal com duas com­po­nentes: um ser­viço pú­blico mi­ni­ma­lista para os mais po­bres e outro, cen­trado nos se­guros de saúde pri­vados, pro­posta que o PSD apre­sentou não há muitos anos.

Ve­jamos o que tem sido de­fen­dido pu­bli­ca­mente neste úl­timo ano sobre a ADSE. O CDS de­fende a sua aber­tura a todos os por­tu­gueses, trans­for­mando-a num grande se­guro de saúde; o PS de­fende a sua trans­for­mação numa As­so­ci­ação Mu­tu­a­lista. En­tre­tanto, o ISCTE apre­sentou re­cen­te­mente um es­tudo em que é su­ge­rida a cri­ação de um se­guro na­ci­onal de saúde obri­ga­tório, ao mesmo tempo que as se­gu­ra­doras de­sen­volvem cam­pa­nhas sis­te­má­ticas de venda de se­guros de saúde, de tal forma agres­sivas, que hoje mais de 2,6 mi­lhões de por­tu­gueses já têm se­guro in­di­vi­dual de saúde.

Não se trata de coin­ci­dên­cias. São ele­mentos dis­persos que nos con­duzem a uma con­clusão muito evi­dente: o ca­pital olha para a saúde não com pre­o­cu­pação re­la­ti­va­mente ao bem-estar dos por­tu­gueses, mas para os 17 mil mi­lhões de euros que este sector mo­vi­menta em Por­tugal.

Falta dizer que é aos be­ne­fi­ciá­rios da ADSE que cabe a res­pon­sa­bi­li­dade, em úl­tima aná­lise, de de­cidir sobre o fu­turo da Ins­ti­tuição.




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