Drapetomania

António Santos

Drapetomania é o nome com que, há 150 anos, a psiquiatria classificava a doença mental que predispunha os escravos dos EUA para «a estranha tendência para fugir dos seus senhores». Longe de ser uma extravagância perdida nos bricabraques da história, eis um exemplo de como a ciência serve sempre interesses de classe. E se o embuste se nos afigura óbvio é pelo efeito de afastamento da escala cronológica.

Quanto mais se aproxima o zoom, menos visíveis são as correntes das classes: em 1927 os manifestantes que protestavam contra o assassinato, pelo Estado, dos revolucionários Sacco e Vanzetti foram internados em hospícios... por «repetir palavras, aos gritos, num tom agressivo»; já nos anos 60, em pleno movimento dos direitos civis, Clennon King Jr. foi internado contra sua vontade por se inscrever numa universidade só para brancos; a mesma sorte teve o agente da polícia de Nova Iorque, Adrian Schoolcraft, quando, em 2009, divulgou provas de corrupção que comprometiam essa força policial; mesmo hoje em dia, o Estado da Califórnia continua a classificar como doença mental o «recorrente mau comportamento das crianças».

Em cima da mesa do presidente dos EUA há, garante o Washington Post, um dossier chamado HARPA, ou Agência de Projectos de Investigação em Saúde Avançada, numa tradução livre. Se algum dia sair do papel, o HARPA alavancará operações que farão o MKULTRA, o infame projecto de controlo mental da CIA, corar de vergonha. O SAFEHOME, por exemplo, usado como cartaz promocional do HARPA e apresentado pessoalmente a Trump pelo seu amigo Bob Wright, o dono na cadeia de televisão NBC, promete, nem mais nem menos, acabar com os tiroteios em massa antes deles acontecerem.

SAFEHOME, «lar seguro», é o acrónimo de «Impedir Eventos Fatais Aberrantes Solucionando os Extremos Mentais» e propõe-se identificar e deter potenciais atiradores através da detecção de padrões de palavras com a análise de dados sobre pesquisas, deslocações, compras, marcadores genéticos e dados biométricos recolhidos por telefones e relógios inteligentes. O SAFEHOME consiste no poderoso algoritmo que processaria todos os dados de 350 milhões de estado-unidenses para, preventivamente, identificar o autor do tiroteio antes dele acontecer. Não, não é ficção científica. Em vários Estados dos EUA já há programas em funcionamento que, com base noutro algoritmo, calculam a probabilidade de um recluso reincidir, adiando a sua libertação em função do que disser o oráculo estatístico. Ninguém diga que os capitalistas não são capazes de sonhar.

Posta ao serviço da opressão da espécie humana e da manutenção da classe dominante, a ciência chamará drapetomania ao instinto de procurar a liberdade e encontrará em tudo o que nos faz humanos um sintoma de loucura porque serve um sistema anti-humano e ele próprio, cada vez mais, louco. Que nome darão um dia os psiquiatras à «estranha tendência» dos capitalistas actuais para soprar vida nas mais inimagináveis distopias?




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