Os amendoins
O que hoje se passou na Venezuela (estamos a escrever na terça-feira) foi mostrado no cabo da RTP e da SIC como um golpe de Estado e foi-se revelando como uma tentativa de golpe de Estado a ocorrer num mundo alternativo só possível em televisão.
De madrugada, Juan Guaidó, cercado por meia dúzia de apaniguados, surgiu a clamar às portas do quartel Carlota, no centro de Caracas, para que os soldados «valientes» e o povo «corajoso» convergissem com ele à porta do quartel para iniciarem o dia «de la liberdad». Essa foi a única intervenção do «líder» a ser mostrada ao longo do dia, a par de uma outra, onde três blindados da polícia faziam manobras junto a escassas dezenas de pessoas, o que permitiu às duas televisões, aos dois pivots e ao sortido de comentadores convocados perorarem fartamente sobre «o atropelamento de civis pelos carros da polícia», só não conseguindo quantificar os atropelados – a maioria falava em «um», alguns arriscavam «vários». É curioso como estes feridos alarmam tanto estes jornalistas, quando as violências nas manifestações do «coletes amarelos», por exemplo, não parecem incomodá-los por aí além...
Entretanto, os relatos dos pivots, supostamente em «directos», falavam de «milhares de pessoas nas ruas» onde apenas se viam escassas pessoas a deambular por vias desertas e – pior do que isso – iam intercalando ao longo do dia manifestações do passado alinhadas com a peroração de Guaidó aos fiéis juntinhos, de manhã, em plano apertado, tudo repetido várias vezes e dando a ilusão de que o «líder» falava para multidões quando, de facto, só o fez (uma vez) para uma dúzia de apaniguados. Este truque grosseiro não foi executado pelos «fiéis de Maduro», foi inserido meticulosamente nas redacções dos dois canais e trata-se de uma contrafacção jornalística deliberada e vergonhosa. As chefias e os jornalistas que fizeram ou encomendaram estes trabalhos, bem podem limpar as mãos à parede. E se fossem escrutinados, o que diria o Sindicato dos Jornalistas?
Passaram a terça-feira nisto, os distintos canais de Informação por cabo da RTP e da SIC: emitindo à exaustão as mesmas imagens sob a designação «em directo», relatando o que estávamos a ver com aquilo que lá não estava, como exaustivamente o fizeram com as multidões enxertadas de outras manifestações ou com comentários a «grandes tiroteios» quando se viam e ouviam alguns disparos para o ar.
Para o final do dia, já com 25 militares refugiados na embaixada do Brasil, os mesmos jornalistas perguntavam, já sem peias: «se o golpe de Guaidó falhar, o que se seguirá? Que fará Trump?».
Estamos assim: os jornalistas já falam de golpes de Estado como duma taça de amendoins. Vejam lá, não se engasguem...