Do «materialismo dialéctico» em Sergei Eisenstein à «representação da realidade» em Dziga Vertov

O Cinema ao serviço da Revolução

A anteceder as duas últimas partes musicais do concerto de sexta-feira, os espectadores do Palco 25 de Abril irão assistir ao visionamento de excertos de duas obras-primas do cinema revolucionário soviético: Outubro 1917 (1928), de Sergei Eisenstein, e O Homem da câmara de filmar (1929), de Dziga Vertov.

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Das correntes do cinema de vanguarda dos anos 20 do século passado, o expressionismo alemão e o experimentalismo soviético fizeram avançar ao extremo a moderna arte cinematográfica – no segundo caso, e sobretudo, em termos de montagem.

Ocupando-nos apenas, para o que aqui nos interessa, do cinema russo contemporâneo das primeiras décadas do processo revolucionário iniciado em Outubro de 1917, é necessário, desde já, sublinhar que, logo nos primeiros anos, o Cinema foi considerado, pelo próprio Lénine, como um dos veículos artísticos e de agit-prop mais decisivos para levar de um modo expedito às massas urbanas e campesinas de um país de tão grandes dimensões a forte imagem e mensagem política, social, económica e cultural da nova sociedade em construção.

E a imediata criação da famosa Escola de Cinema de Moscovo, logo em 1919, foi o detonador por excelência para a acção criativa e o ensino mobilizador de grandes mestres como Lev Kulechov, Vsevolov Pudovkin, Alexandr Dovzhenko e, precisamente, Sergei Eisenstein e Dziga Vertov.

Filmado com a mobilidade e a destreza aparente de uma «quase-reportagem» em tempo real, Outubro 1917 segue de perto o relato testemunhal que o jornalista norte-americano John Reed nos deixou no seu empolgante livro Os Dez Dias que Abalaram o Mundo, a ponto de Eisenstein chegar a incluir, como subtítulo do próprio filme, aquela consagrada expressão.

Entretanto, Outubro 1917 é muitíssimo mais do que isso, transformando Eisenstein esse relato numa monumental e épica obra-prima, na qual a mais elaborada e sumptuosa mise-en-scène se encontra, sequência-a-sequência, em permanente contraste com o uso absolutamente decisivo da montagem,

enquanto dispositivos e elementos por excelência da linguagem e da escrita cinematográfica, elevados a um expoente máximo pelo histórico cineasta, constituindo o que poderia designar-se como uma aproximação eminentemente materialista-dialéctica ao cinema, por parte do grande Mestre soviético.

Os excertos deste filme que serão apresentados no Palco 25 de Abril – antecedendo a execução de três peças sinfónicas de Dmitri Shostakovitch – arriscam uma das últimas sequências do filme: desde a importante reunião de 10 de Outubro (23 de Outubro) do Comité Central do Partido Bolchevique, na qual se decide proceder ao levantamento armado, até ao assalto e tomada final do Palácio de Inverno (sede do Governo Provisório de Kerensky, o qual entretanto se escapulira), passando pela intensa mobilização, centrada no Smolny, de operários, soldados, marinheiros e Guardas Vermelhos sob a direcção do Comité Militar Revolucionário; a votação esmagadora nos bolcheviques durante o II Congresso dos Sovietes; ou o «sinal» dado pelo disparo do cruzador Aurora para o desencadear das operações de 25 de Outubro (7 de Novembro), culminando com a aprovação, já na madrugada de 26 de Outubro (8 de Novembro), das primeiras leis do novo poder revolucionário: o Decreto da Paz e o Decreto da Terra.

Já o filme O Homem da câmara de filmar, de Dziga Vertov – que antecederá a terceira e última parte do concerto, constituída pela evocação eloquente de Canções Populares, Patrióticas e Revolucionárias Russas e Soviéticas – representa um reflexo radical e experimental, no cinema moderno, dos movimentos vanguardistas que acompanharam a par e passo, nas Artes e na Literatura, o despontar e a afirmação do novo Poder Soviético. Vertov utiliza, como nenhum outro até então, a montagem e outras técnicas e processos inovadores para o desenvolvimento de uma «narrativa» que, contraditória e utopicamente, não pretende sê-lo: a sequência e as diversas durações dos planos, o modo pelo qual utiliza a montagem (linear, contrastante, pausada, vertiginosa, até ao fotograma «subliminar»!), a partição, deformação e sobreposição de planos, enquanto manifestação materialista de uma, dir-se-ia, «pureza realista», ao contrário do «formalismo» de que chegou a ser acusado.

Essa espécie de «manifesto artístico», traduzido nas legendas introdutórias ao filme, que Vertov faz questão de inserir, de forma sintética, antes das suas primeiras imagens – ao proclamar estarmos perante «uma experiência na comunicação cinematográfica de eventos reais», «um filme sem títulos intercalares (…) sem argumento (...) sem cenários, actores, etc.» – é, na sua súmula, a transcendente conjugação e transposição cinematográfica das correntes estéticas a que deu corpo: o Cinema- Verdade (Kino Pravda) ou o Cinema-Olho (Kino Glaz) e, que estão na raiz de tantas obras-primas que nos legou, quer na forma de jornais de actualidades quer na forma de curtas e longas-metragens.

Do conjunto deste filme único de Dziga Vertov – que o mesmo subintitulou, significativamente, «Excertos do Diário de um operador de câmara» – bem como nas sequências que os espectadores irão ver, percebemos que se trata, aqui sim, de uma «reportagem», uma especialíssima «reportagem», num sentido lato do termo.

Nela assistiremos, sobretudo (na edição dos excertos escolhidos), à evolução do quotidiano, desde o amanhecer de uma grande cidade até ao louvor ao trabalho, à produção, à criação de energia, ao comando e ao domínio, pelo Homem e pelo colectivo, das ferramentas, das máquinas, da tecnologia, à inserção do próprio operador com a sua câmara de filmar (!), como se estivéssemos perante uma alusão à célebre consigna de Lénine: «O comunismo é o Poder Soviético mais a electrificação de todo o país». (1)

Entretanto, uma outra curiosidade, não menor, nos será proporcionada pelo modo de apresentação dos excertos destes dois filmes: o desafio transcendente que fizemos ao extraordinário pianista e compositor português Mário Laginha, para acompanhar ao piano – improvisando ou, se se quiser, compondo espontaneamente – em pleno palco e “ao vivo”, a sua projecção.

Um elemento mais – e fascinante, e decisivo – para a extrema importância, real e simbólica, deste concerto celebratório da Revolução de Outubro.

(1) V. I. Lénine, Obras Escolhidas em três tomos, tomo III, Edições Avante!, Lisboa,1979, pág. 429

 



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