Os civis

Anabela Fino

«Quinze cidadãos, escolhidos de forma a espelharem tanto quanto possível a diversidade da sociedade portuguesa», estiveram no último fim-de-semana na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa a «debater propostas para melhorar a comunicação entre os cidadãos e os políticos que os representam». Segundo os promotores da iniciativa, que se designam de Fórum dos Cidadãos, a apresentação e discussão dos resultados deste primeiro encontro «ocorrerá num evento público» no dia 17 de Janeiro, pelo que sobre a substância do que lá se passou nada se pode avançar. Já quanto ao modus operandi e ao projecto em si – «revigorar a democracia portuguesa, fazendo ouvir a voz informada e reflectida de cidadãos comuns sobre grandes temas» – sobejam as dúvidas.

Apresentando-se como um «projecto da sociedade civil, apartidário e sem orientação política ou ideológica que pretende estabelecer-se como uma nova instituição na sociedade civil portuguesa», este Fórum conta com o apoio de personalidades como Eduardo Lourenço, José Gil, Henrique Neto, David Justino, Margarida Mano, José Magalhães, Adriano Moreira, Rui Tavares e Manuel Maria Carrilho», como os próprios enunciam, que por acaso – será? – têm bem conhecidas ligações político-partidárias.

Quanto aos 15 cidadãos representativos – escolhidos por sorteio com a ajuda de uma empresa de estudos de mercado – foram chamados para assistir, primeiro, a «palestras dadas por figuras do mundo da política, da academia e do jornalismo político» como o deputado Ricardo Baptista Leite, do PSD, o ex-deputado José Magalhães, do PS, ou o jornalista do Expresso Filipe Santos Costa, e deliberar, depois, ««com o apoio de facilitadores experientes», sobre as «diferentes propostas». Convenhamos que, no respeitante a «reinventar a democracia», é quase como anunciar a descoberta da roda nesta primeira metade do século XXI.

O mais curioso desta iniciativa – financiada pela Universidade Nova de Lisboa e pelo Instituto Gulbenkian da Ciência – é que, tal como na Grécia antiga, que se diz ser a pátria da democracia, onde se exceptuarmos escravos, mulheres e estrangeiros «todos» podiam participar das instituições democráticas, também aqui estão representados «todos», da «direita à esquerda», excepto os que lá não estão.

Se estou enganada, peço desculpa, mas numa altura em que a «sociedade civil» é representada como apolítica, apartidária, sem orientação ideológica, e os «políticos» – assim mesmo, em abstracto, como uma espécie estranha à própria sociedade, este projecto para «melhorar a comunicação» mais parece, no mínimo, uma manobra de diversão. Como se o problema estivesse na comunicação e não nas políticas de direita seguidas ao longo de décadas em Portugal, como de resto noutros países, onde pelos vistos a experiência vem sendo implementada sob o atractivo nome de «sistema de deliberação cívica». Como de boas intenções está o inferno cheio, a Assembleia da República que se cuide.

 



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