Cofres cheios, barrigas vazias

Margarida Botelho

Durante a ditadura fascista, o povo passava fome mas, dizia-se, o país tinha ouro. E Salazar era muito sério.

Ainda hoje, quase 41 anos depois, é possível ouvir, incluindo a gente jovem, a mesma baboseira sobre o suposto ouro e sobre uma suposta «pobreza» do ditador.

Se não fosse esta imediata associação à propaganda do fascismo, se calhar até nos davam vontade de rir as declarações da Ministra das Finanças: «temos cofres cheios para poder dizer tranquilamente que se alguma coisa acontecer à nossa volta que perturbe o funcionamento do mercado, nós podemos estar tranquilamente durante um período prolongado sem precisar de ir ao mercado, satisfazendo todos os nossos compromissos.»

Se não fosse esta declaração encaixar totalmente na brilhante síntese de Luís Montenegro, líder parlamentar do PSD, sobre a situação do país e até se podia pensar que Maria Luís Albuquerque estaria com problemas de expressão. Dizia Montenegro: «a vida das pessoas não está melhor, mas a do país está muito melhor».

Ou seja: estas pessoas têm mesmo a concepção de que o «país» é qualquer entidade alheia ao povo que o habita. O «país» tem cofres cheios e está muito melhor, mesmo que quem nele vive tenha as barrigas vazias.

Para este Governo, e para as troikas, tanto se lhes dá que os portugueses tenham os bolsos, os frigoríficos, as despensas ou as lancheiras vazias. Tanto se lhes dá se as consultas de rotina se esvaziam por falta de profissionais e de utentes que tenham dinheiro para lá ir, que as farmácias vão à falência porque o povo não toma os medicamentos que deve, que os cinemas e os teatros fechem porque não há quem possa comprar bilhetes, ou que se fechem escolas, centros de saúde, correios ou tribunais. Tanto se lhes dá que haja idosos a morrer de frio por não ligarem o aquecedor no inverno, ou que pais interrompam a vacinação dos filhos.

Tanto se lhes dá, porque para esta gente o «país» são os credores, os cofres, os mercados, os lucros dos grupos a quem servem. O resto são danos colaterais. É por isso que estão tão socialmente isolados e tão politicamente derrotados. É por isso que é preciso e urgente correr com esta gente.




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