(Des)Confiança

João Frazão

A cri­ança está sen­tada, so­zinha, en­quanto a mãe en­frenta todas as ad­ver­si­dades nos trans­portes. A mãe chega e pede-lhe des­culpa pelo atraso. A cri­ança, num abraço forte, mostra que sabia que a mãe apa­re­ceria, mais tarde ou mais cedo.

Eis a sín­tese da nova acção de pro­pa­ganda de uma ca­deia da grande dis­tri­buição que, ao que pa­rece, pre­tende apa­recer aos olhos dos por­tu­gueses tão con­fiável como uma qual­quer mãe aos olhos do seu filho.

Na maior des­fa­çatez, a em­presa do grande mer­ce­eiro na­ci­onal, Bel­miro de Aze­vedo, pro­cura ex­plorar os mais pro­fundos e sin­ceros sen­ti­mentos, a que di­fi­cil­mente se pode ficar in­sen­sível. A pre­o­cu­pação de qual­quer mãe que tra­balhe num outro lado da ci­dade e que tenha os mi­nutos con­tados para ir buscar os seus fi­lhos à es­cola, a calma se­rena de um filho que sabe que a sua mãe não lhe fal­tará.

Acon­tece que, en­quanto num qual­quer la­bo­ra­tório se apri­mo­ravam ima­gens bo­nitas e to­cantes para a pu­bli­ci­dade, por todo o País, nas lojas dessa ca­deia, as che­fias davam cum­pri­mento à ori­en­tação da ad­mi­nis­tração de tentar impor, aos seus tra­ba­lha­dores, na sua mai­oria mu­lheres, o banco de horas, que as obri­garia a estar à dis­po­sição da em­presa sempre que a esta in­te­res­sasse – fins de tarde, noites e fins de se­mana, al­turas em que os fi­lhos podem estar em casa –, e fi­cando em casa em mo­mentos em que as vendas fossem menos sig­ni­fi­ca­tivas – ma­nhãs e tardes, em que os fi­lhos estão nas es­colas.

Esta in­tenção, que foi der­ro­tada em al­guns lo­cais de tra­balho pela firme opo­sição dos tra­ba­lha­dores e do seu sin­di­cato de classe, apesar das ma­no­bras de pressão, chan­tagem e au­tên­tica per­se­guição aos que re­sis­tiram, in­sere-se aliás numa ofen­siva mais geral desta e das ou­tras em­presas da grande dis­tri­buição, com vista à des­re­gu­lação dos ho­rá­rios de tra­balho, à re­dução dos sa­lá­rios pagos, à pre­ca­ri­zação dos vín­culos e à di­mi­nuição ge­ne­ra­li­zada de di­reitos.

Ofen­siva contra tra­ba­lha­doras, muitas delas mães, com fi­lhos que as es­peram ao fim do dia em qual­quer es­cola, que ti­nham con­fi­ança, e or­ga­ni­zaram as suas vidas em função disso, em ho­rá­rios e di­reitos que exer­ciam, em al­guns casos há dé­cadas, que agora são postos em causa, para en­gordar a for­tuna dos mais ricos do país e fazê-los trepar na lista dos mais ricos do mundo.

É caso para des­con­fiar!

 



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