Ingerências
Escrevemos em cima do acontecimento. A propósito do envio de tropas russas para a Crimeia, Barack Obama afirmou que «o mundo está unido para reconhecer que as medidas tomadas pela Rússia na Crimeia são claramente uma violação da soberania ucraniana e do direito internacional» (Público, 4/03) e os ministros das relações externas europeus, reunidos por convocatória urgente da Baronesa Ashton, a 3 de Março, proferiram exaltados clamores à defesa da soberania ucraniana. Em comunicado condenam «a clara violação da soberania e integridade territorial ucraniana por acto de agressão das Forças Armadas russas», acções que «violam claramente a Carta das Nações Unidas e a acta final de Helsínquia da Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa (OSCE)». É curioso que tais importantíssimos documentos históricos para a segurança e a paz mundial só tenham sido recordados agora, pois a história dos últimos meses diria que aqueles que «defendem» hoje tão nobres princípios estiveram activamente a violar os mesmos sem nenhum problema de consciência. A Carta das Nações Unidas, no seu artigo 1.º, estabelece o desenvolvimento de «relações de amizade entre as nações baseadas no respeito do princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos», e entre os princípios da Acta de Helsínquia, estabelece-se a «igualdade soberana dos Estados» e a «não intervenção nas questões internas».
Sem grandes detalhes, demos uma pincelada pela história recente.
Lembremo-nos de que a chamada crise ucraniana iniciou-se no final de Novembro passado com a não assinatura pelo presidente eleito Ianukóvitch do acordo de associação (na prática, um acordo de livre comércio que determinava privatizações entre outros «brindes») com a UE. Uma decisão soberana. Na altura, na sua intervenção na cimeira para a Parceria Oriental, o comissário Stefan Füle afirmou que essa decisão «não era apenas uma desilusão para a União Europeia, mas também para o povo da Ucrânia». Falou, portanto, em nome do povo ucraniano. Iniciaram-se as manifestações da oposição a Ianukóvitch em Kiev, sabe-se perfeitamente, sob o comando e incitamento à violência de forças reaccionárias e fascistas como os partidos Udar ou Svoboda. Ashton vai a Kiev reunir com Ianukóvitch, a 11 de Dezembro, e em seguida visita os manifestantes da Praça Maidan. Em relação à reunião afirma «acreditar que o acordo deveria ser assinado o quanto antes, porque penso que é do interesse da Ucrânia fazê-lo». Sobre os manifestantes, deixa mensagens no twitter: «Continuo em Kiev. Eu estava com vocês na Maidan hoje à noite». Em Janeiro declara-se «profundamente preocupada» com a adopção das leis anti-motins, que foram posteriormente revogadas. Ainda assim, a meio de Fevereiro, ameaça que a UE estudará sanções contra os «responsáveis pela repressão na Ucrânia». Finalmente, e após o golpe de Estado consumado na Ucrânia, Ashton apressa-se a reunir com o novo governo, legitimando-o, prometendo ajuda financeira a troco de um «programa de reformas». Governo que, aliás, foi determinado pela concertação entre Victoria Nuland, vice-secretária de Estado dos EUA e o embaixador dos EUA em Kiev, o que ficou claro na conversa telefónica entre os dois, tornada pública, e na qual a UE não é propriamente bem tratada (ver reportagem RTP http://www.rtp.pt/noticias/index.php?article=715285&tm=7&layout=121&visual=49). A reunião do passado dia 3 de Março dos Ministros dos Negócios Estrangeiros da UE saudou os esforços do novo governo para estabilizar a situação e empreender reformas, reafirmando a necessidade de uma reforma constitucional na Ucrânia.
A UE e os EUA desestabilizaram a sociedade ucraniana e instrumentalizaram as legítimas aspirações deste povo em acabar com as enormes desigualdades sociais que a caracterizam. Financiaram e conspiraram os incitadores da violência, grupos fascistas, com o objectivo do golpe de Estado. Estão a pôr em prática as «reformas» que lhes interessam. No meio de tudo isto, é caso para perguntar, onde ficou a Carta das Nações Unidas e a Acta de Helsínquia?