Mistificações e realidade
Se há algo que a experiência política testemunha é a correspondência, integral e proporcionada, entre os projectos do grande capital e seus executores e a expressão, intensidade e apuro da campanha ideológica que a acompanha. Nada que cause estranheza, compreendida que seja a relação entre poder e ideia dominante.
Não há desenvolvimento soberano sem ruptura com a política de direita
Assim tem sido e assim não poderia deixar de ser no presente momento em que a actual ofensiva inscreve como objectivos confessados a liquidação de direitos essenciais, a destruição da vida dos portugueses e do futuro soberano do País, a subversão do regime democrático. Hoje, como em nenhum período da nossa vida política mais recente, a operação ideológica em torno do chamado «programa de assistência» e das políticas que em seu redor se desenvolvem ganha tão expressiva dimensão. Com a novidade de corresponder, agora, a uma corrente conjugada de formatação da opinião pública, em que à usual mistificação política e à inerente ampliação pela legião de comentadores e analistas ao seu serviço se junta o alinhado pronunciamento dos principais centros e organizações do grande capital transnacional, quer seja pelo boçal vozear dos seus mais expoentes representantes, quer seja pela drenagem de putativos estudos e análises macro económicas ou projecções estatísticas.
Novidade que, correspondendo à intensificação e densificação dessa ofensiva e das suas consequências no plano ideológico, tem o mérito de desmontar uma das mais habilidosas mistificações que se tem procurado semear: a de que o programa de exploração e retrocesso social imposto ao País e aos trabalhadores é, de facto, projecto comum do grande capital e dos seus representantes internos e externos e não uma qualquer relação de imposição/subordinação, com o propósito de assim culpabilizar uns e inocentar outros. Evidenciação tão mais importante quanto na fase actual de concretização do pacto de agressão emerge uma das mais falsas e cínicas proclamações feita pelos responsáveis do trajecto de alienação da soberania nacional: a de que a agenda de destruição da vida do País e dos portugueses estaria construída em nome de «libertar» o País da condição de «protectorado». Proclamação essa acompanhada do cortejo de argumentário ideológico que lhe dá suporte e a potencia, e que conhece na repetição exaustiva de que «os sacrifícios estão a valer a pena», que «não podemos deitar agora tudo a perder» ou que «os sinais de viragem aí estão para desmentir a espiral recessiva», fundamentos para sustentar, por um lado, os apelos à aceitação passiva e resignada de novos roubos e para justificar, por outro lado e em simultâneo, novas medidas de assalto às condições de vida do povo.
Quebrar as amarras da dependência
Pode dizer-se que no antes, no presente e no que se ambiciona projectar para o futuro a operação ideológica em curso, baseada em dois pretextos – o da alegada necessidade de assistência financeira, primeiro, e agora o da criação de condições para o País dela não necessitar –, visa concretizar o objectivo, único e essencial, mas sempre escondido que está presente na acção do Governo, do capital transnacional e das entidades que lhe dão suporte: responder à crise estrutural do capitalismo com a acentuação da exploração do trabalho, o rebaixamento das condições de vida dos povos e a liquidação de direitos sociais, num processo de retrocesso democrático e civilizacional.
No «antes», coroado com a subscrição do actual pacto de agressão edificado a partir dos andaimes deixados pelos PEC dos governos PS, com a intolerável chantagem ideológica e de manipulação do medo de que o espantalho da bancarrota ou as exigências dos «credores» são peças maiores. No «presente», desde então percorrido, primeiro, com a massificação ideológica destinada a convencer que o «ajustamento ou consolidação orçamental» decorria de um país a viver «acima das possibilidades», de «direitos a mais» remetidos para a configuração do Estado e as funções constitucionais de que está incumbido; e agora, com a intensa campanha em torno dos «consensos nacionais e da paz social» ou da declaração de guerra à Constituição por via do questionamento do papel fiscalizador do Tribunal Constitucional, apresentados como condição do chamado «regresso aos mercados» em Junho de 2014 (iludindo que solenemente o haviam anunciado para Setembro passado). Tudo, no antes e no agora, para assegurar as condições para poderem perpetuar com os mesmos ou outros instrumentos, os mesmos ou outros parceiros de quadrilha, o processo de saque aos salários e rendimentos dos trabalhadores e de extorsão dos recursos e soberania nacionais.
O que no futuro próximo se coloca é a afirmação e comprovação de que não há nem quebra das amarras da dependência a que nos querem condenar, nem possibilidades de um desenvolvimento soberano ao serviço da elevação das condições de vida, sem uma ruptura com a política de direita, não limitada à inadiável exigência da demissão do Governo, mas também da ruptura com o processo de integração capitalista europeu onde já moram (com o apoio e aplauso de PSD, CDS e PS) todos os instrumentos necessários ao prolongamento do declínio económico e retrocesso social que o País amargamente conhece e rejeita. Com a segura certeza de que será nos trabalhadores e no povo português e na sua luta que residirá essa afirmação de dignidade nacional.