O arco da contradição

Luís Carapinha

A demagogia anti-russa lembra a Guerra Fria

Em vésperas da realização da Cimeira do G20 de São Petersburgo, aprofunda-se o foco de dissonância nas relações entre Washington e Moscovo. Não teria sido necessário esperar pela decisão de Obama de cancelar o encontro com Pútin, previsto para a capital russa, para certificar a inconsistência do ainda há pouco tão badalado reset EUA-Rússia. A exasperada reacção da Casa Branca à decisão de conceder asilo temporário a Snowden, o ex-agente dos serviços secretos responsável pelas últimas revelações sobre a rede de espionagem global montada pelo imperialismo norte-americano com a aquiescência dos seus acólitos europeus, é mais um sinal – gradativo – do rumo de uma relação de assimetria pautada pela diferença de interesses e a oposição de políticas e alianças na arena internacional. Tudo isto num contexto de agravamento da crise económica capitalista. Em tempos de frenesim belicista, o imperialismo não perdoa ao regressado Presidente russo – autor do discurso de Munique de 2007 – a afirmação pelo capitalismo russo do princípio da soberania nacional e a invocação prática da Carta da ONU e defesa do direito internacional.

A ingerência e demagogia anti-russa adquirem proporções que lembram os tempos da Guerra Fria, embora o paralelismo só se justifique na forma. A Rússia participa na construção de organizações com a projecção do BRICS e da Organização de Cooperação de Xangai (OCX). O seu relacionamento no quadro da CEI, com a América Latina (é, por exemplo, o mais importante parceiro de Caracas na modernização da capacidade defensiva da Venezuela bolivariana), o eixo estratégico que liga Moscovo a Pequim – com tudo o que isso significa para a correlação de forças mundial –, o posicionamento face à Síria, Irão e a situação vivida no Médio Oriente constituem alguns dos vértices da crescente contradição entre Moscovo e a estratégia global imprimida desde Washington. São conhecidas as críticas do Kremlin à hegemonia do dólar e à Reserva Federal e FMI, apesar dos compromissos e acento liberalizante mantidos na política económica interna. É, contudo, no plano militar que a «linha de choque» EUA-Rússia assume maior evidência. O expansionismo da NATO nas barbas da Rússia prossegue, permanece o desacordo sobre o tratado de forças convencionais na Europa que a Rússia denunciou e, claro, os EUA não desistem de concretizar o escudo global antimíssil. Programa militar que pesa como espada de Dâmocles sobre a capacidade estratégica nuclear da Rússia, legada da URSS (e o próprio equilíbrio estratégico mundial, de certa forma ainda conservado). Sem esta força dissuasora decisiva, muito provavelmente a Federação Russa já não existiria, pelo menos nas actuais fronteiras.

Há 20 anos Ieltsin preparava o golpe que liquidaria o Soviete Supremo da Rússia. Muito haverá ainda para revelar sobre a chacina de 3-4 de Outubro de 1993 nas ruas de Moscovo e do assalto final à sede do Parlamento russo, sob o aplauso dos líderes do eixo transatlântico. Na euforia democrática, os estrategas de Washington não escondiam os planos criminosos para a Rússia. A liderança russa enxergou que a submissão tem um preço incomportável: não a integração no mercado mundial, mas a capitulação e a desintegração da Federação, seguindo o destino da URSS em 1991. Daí todos os dilemas hoje evidentes. Apesar das limitações e distorções, o capitalismo russo não pôde contrariar a vontade popular de restituir a dignidade e orgulho nacionais. Seria porém um erro julgar que o cordão umbilical com a Rússia do esbulho privatizador de Ieltsin, Gaidar e Tchubais foi definitivamente rompido.




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