Os carrascos
Na quinta-feira passada, a Assembleia da República discutiu as propostas de lei do Governo para aumentar o horário de trabalho e legalizar o despedimento arbitrário e sem justa causa na administração pública.
Só gente muito distraída poderia esperar que os trabalhadores comessem e calassem tal proposta. Os últimos dois anos demonstram bem como tem sido profunda, diversificada e de dimensão extraordinária a luta dos trabalhadores e do povo. As últimas duas semanas mostram bem a força que essa luta tem tido: em dois anos, um Governo, uma maioria e um Presidente foram derrotados e isolados.
Por muito que a tentem ignorar, a luta incomoda muito os vários subscritores e apoiantes das troikas. Dão ordens à comunicação social e ao cortejo de comentadores para a desvalorizarem, tentam o mais possível manter os manifestantes longe da vista, procuram aplicar todas as medidas ao seu alcance para perseguir e condicionar quem luta.
Mas há momentos em que a máscara lhes cai. E na quinta-feira, no Parlamento, foi a presidente da Assembleia da República que viveu um desses momentos. Incomodadíssima com os protestos dos trabalhadores da administração pública nas galerias, fez três declarações: que tem de se repensar o acesso do povo à Assembleia, que os deputados não foram eleitos para serem «amedrontados e desrespeitados» e citou Simone de Beauvoir para dizer que «não podemos deixar que os nossos carrascos nos criem maus costumes».
Já muito se escreveu e disse sobre a infeliz citação, escrita a propósito da opressão nazi sobre a França ocupada na 2.ª Guerra Mundial. Assunção Esteves, confrontada pelos jornalistas, negou que quisesse comparar os trabalhadores aos nazis. Mesmo acreditando na tese do lapso, a verdade é que a presidente da Assembleia República está, no mínimo, a ver o filme ao contrário: há carrascos nesta história, sim senhor, mas não são os trabalhadores. Estes carrascos de agora terão, mais cedo que tarde, o mesmo destino de todos os outros ao longo da história da humanidade.