A metáfora
«Quando o governo viola os direitos do povo, a insurreição é, para o povo e para cada porção do povo, o mais sagrado dos direitos e o mais indispensável dos deveres». Esta frase não é uma metáfora, não foi dita por Simone de Beauvoir, nem foi citada por Assunção Esteves na Assembleia da República (ou em qualquer outro lugar, que se saiba), mas assenta que nem uma luva – metaforicamente falando – à situação que se vive no País, apesar de ter sido escrita há mais de duzentos anos pelo francês François Noël Babeuf, mais conhecido pelo nome de Gracchus Babeuf.
É de admitir que Assunção Esteves, que há uma semana atribuiu (mal) a Simone de Beauvoir uma frase que a escritora foi buscar a Gracchus Babeuf, desconheça quem foi este jornalista que participou na Revolução Francesa e que foi executado pela sua intervenção na Conspiração dos Iguais.
É também de admitir que Assunção Esteves – para quem a frase «não podemos permitir que os nossos carrascos nos criem maus costumes», usada por Beauvoir no contexto da opressão nazi sobre os franceses na Segunda Guerra Mundial, é passível de ser usada como «metáfora» para se referir aos protestos populares que se ouviram há uma semana no Parlamento – é de admitir, dizia, que Assunção Esteves sofra de uma grave carência de citações, já que usou justamente a mesma frase – não se sabe se metaforicamente – no longínquo ano de 2006, desta feita no Parlamento Europeu, a propósito da prisão norte-americana de Guantánamo.
É ainda de admitir que a presidente da Assembleia da República – logo, a segunda figura do Estado – esteja a necessitar urgentemente de um dicionário de sinónimos, pois quando foi instada a explicar-se pelas (mal)ditas palavras, afirmou sem hesitações: «Carrasco significa qualquer elemento de perturbação. Sem querer ofender nada nem ninguém. Significa que quando as pessoas nos perturbam, não devemos dar atenção». Como? Mas então «carrasco» não é «algoz», «pessoa cruel», «executor da pena de morte»? Em que tempo, em que língua, em que país encontrou Assunção Esteves – ainda que metaforicamente falando – um significado tão inócuo para «carrasco»? Ou será que o (des)acordo ortográfico, para além do «irrevogável», também mudou o significado de «carrasco» e se esqueceram de nos avisar?
Mas então, se tudo não passa de uma metáfora, por que motivo a senhora presidente da Assembleia da República, passado o histerismo que lhe provocou a indignação dos trabalhadores com a aprovação de leis iníquas que aumentam para 40 horas o horário de trabalho e apontam o despedimento como perspectiva de futuro, acha que «se calhar faz sentido repensar o modelo» de acesso do povo à casa... do povo?
Há 217 anos, Gracchus Babeuf, que Marx considerou o primeiro comunista activista, já sabia a resposta: «Chegou a hora das grandes decisões. O mal encontra-se no seu ponto culminante, está a cobrir toda a face da terra. O caos, sob o nome de política, há já demasiados séculos que reina sobre ela. Que tudo volte, pois, a entrar na ordem exata e que cada coisa torne a ocupar o seu posto. Ao grito de igualdade, os elementos da justiça e da felicidade estão a organizar-se. Chegou o momento de fundar a República dos Iguais, este grande refúgio aberto a todos os homens». Sem metáforas.