Dignidade e soberania

Luís Carapinha

Como lembrou Morales, um povo digno e soberano não pode ser intimidado

Constitui um acto da maior gravidade a interdição do espaço aéreo ao avião de Evo Morales por quatro países da UE, incluindo Portugal, e o posterior sequestro de facto do Presidente boliviano durante quase 14 horas após a aterragem de emergência em Viena, no seu regresso de Moscovo. Trata-se de uma violação das normas e convenções internacionais sem precedentes em tempo de paz, justamente qualificada pelo Governo de La Paz como «terrorismo de Estado». Uma agressão e provocação grosseira contra um Estado soberano que, atente-se, integra a Aliança Bolivariana (ALBA), sendo palco de um dos processos democráticos transformadores mais significativos da actualidade na América Latina. Não menos grave, configura um acto de vergonhosa subserviência dos governos títeres de Paris, Lisboa, Roma e Madrid – não importa se governados pela social-democracia ou a direita – face aos EUA e às manobras obscuras da CIA que colidem frontalmente com o direito internacional. Comprovando-se cristalinamente o desinteresse na UE em confrontar os EUA sobre os factos de espionagem global revelados pelo ex-agente da NSA, Snowden. Na verdade, como já ficara patente no caso dos voos ilegais da CIA, a cumplicidade umbilical existente entre as duas margens do eixo transatlântico no plano estratégico – como o é a procura de respostas de força e cariz antidemocrático aos desafios da crise sistémica do capitalismo – continua a sobrepor-se ao atiçar das rivalidades e ao desfiar de constantes patifarias recíprocas e o desconforto com a tutela de Washington.

Em nenhuma circunstância podem ser atenuadas as responsabilidades individuais dos governos por um acto também dirigido contra os povos latino-americanos, como é referido na Declaração de Cochabamba subscrita por diversos chefes de Estado no quadro da UNASUR. A este respeito, e apesar de não surpreendente, a posição antipatriótica do Governo de Passos e Portas é motivo de profundo desprestígio e vergonha para o nosso País. E é grave o silêncio do Presidente da República, numa matéria em que o Governo se colocou ao arrepio da própria letra da Constituição.

O bloqueio de Morales – e o seu enquadramento com as novas revelações das redes ilegais de espionagem do imperialismo que colocam potencialmente sob vigilância qualquer ser humano em praticamente qualquer ponto do planeta – ilustram bem o tempo que vivemos e os perigos que comporta. A defesa dos direitos e liberdades democráticas aliado à defesa do exercício da soberania conflui com a luta anti-imperialista e articula-se ainda mais estreitamente com a necessidade de transformações estruturais. Na arena internacional uma linha grossa de fractura continua a tomar forma e a consolidar-se, apesar dos factores de contradição que perpassam cada campo internamente. Linha que no actual contexto e conjuntura separa crescentemente as forças motrizes da ofensiva imperialista e o arco de forças qualitativamente diversas e até contraditórias que, não obstante, lhe oferece resistência. As lutas progressistas e revolucionárias na América Latina colocam o subcontinente numa posição avançada da correlação de forças, desafio que os EUA, o grande capital e as oligarquias não ignoram. A fasquia continua a subir. O atentado contra o Presidente da Bolívia acontece pouco depois do anúncio do acordo de cooperação entre a NATO e a Colômbia, facto inédito que passou «despercebido» aos olhos da comunicação dominante.

Para já o tiro saiu pela culatra. A firme solidariedade com a Bolívia na América Latina teve amplos ecos no mundo. E como lembrou Morales, um povo digno e soberano não pode ser intimidado.




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