O modelo

Anabela Fino

Da querida e velha Florença, onde segundo o currículo oficial leccionou Direito no Instituto Universitário Europeu, o agora ministro Miguel Poiares Maduro voltou, receamos bem, mais influenciado pelo Santo Ofício do que pela Galeria dos Ofícios, esse palácio que acolhe um dos mais famosos e antigos museus do mundo e que conta entre os seus inúmeros tesouros com aquele «retrato que toda a gente conhece» de Galileu Galilei, como tão bem nos contou Gedeão no seu poema.

O receio em relação às simpatias do ministro decorre de recentes declarações que fez sobre o Tribunal Constitucional, a quem acusou de limitar «em excesso» a «liberdade de deliberação democrática em determinadas matérias».

É bem verdade que já anteriormente, enquanto académico, Maduro havia assumido idêntica posição relativamente ao Tribunal Constitucional alemão, mas o facto de se manter coerente não retira gravidade ao que disse. O que aqui está em causa, antes do mais, é o ministro considerar que os governos, ainda que democraticamente constituídos, devem ter «liberdade de deliberação» sem terem de se sujeitar ao que está consagrado, não pelo Tribunal Constitucional, mas pela Constituição. Ou seja, o que está subjacente às palavras de Maduro, não é o princípio, esse sim democrático, de actuação dos governos conforme à lei fundamental, mas o princípio de instituir modelos assaz elásticos de «interpretação constitucional», de molde a que os tribunais constitucionais – os tais que devem velar pelo cumprimento da Constituição, recorde-se – possam a cada momento fazer leituras à la carte da Constituição. É claro que o ministro tenta pôr-se a recato de críticas afirmando, en passant, que o recurso à elasticidade interpretativa seria para usar em «circunstâncias como estas que enfrentamos hoje». O que não diz – e como académico isso fica-lhe mal – é que no momento em que os tribunais, num Estado que se afirma democrático, deixem de ter como modelo de conduta o respeito pela letra e pelo espírito das leis e passem a tomar as suas decisões ao sabor das conveniências do governo em funções, nesse momento, dizia, está posta em causa a própria essência do Estado de direito, já de si tantas vezes tão torto mesmo sem estas artimanhas.

Isto digo eu, que não sou professora de Direito e nunca leccionei em Florença, mas que conheço a história de Galileu Galilei – e tantos outros – que ousaram enfrentar os poderes instituídos e partilhar as suas ideias e por isso foram vítimas de tribunais como o Santo Ofício, que tinha um modelo de interpretação tão elástico tão elástico que na sua alçada podia cair quem os inquisidores quisessem.

Não terá sido pois por acaso que ao ser confrontada com as palavras do ministro Maduro me lembrei de Galileu e do belo poema que Gedeão lhe dedicou. Para além de lavar a alma, o poema lembra-nos como devemos estar gratos pela «inteligência das coisas» que certos homens nos deram, homens como Galileu ou Álvaro Cunhal que enfrentaram os «doutos juízes» e resistiram a todas as torturas / a todas as angústias, a todos os contratempos / enquanto eles, do alto incessível das suas alturas / foram caindo / caindo / caindo / caindo / caindo sempre / e sempre / Ininterruptamente / na razão directa do quadrado dos tempos.



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