Artista, intelectual e militante comunista (*)

Image 12856

A par de uma intensa actividade política revolucionária, Álvaro Cunhal desenvolveu, ao longo da sua vida, um apaixonado interesse por todas as dimensões da existência. Militante e dirigente comunista, sempre que as circunstâncias de todo não o impedissem praticava e convivia com as artes, a ficção literária e as artes plásticas, assim como é levado a confessar a sua paixão pela música. Ao mesmo tempo, manteve uma longa e intermitente reflexão sobre a arte e a estética. Quando publica o livro «A Arte, o Artista e a Sociedade», percebemos justamente que o seu pensamento sobre estética foi evoluindo ao longo da sua vida, os seus conceitos operatórios foram-se desenvolvendo e superando, até que o seu pensamento abandona qualquer mecânica instrumental na apreciação da arte.

Para Álvaro Cunhal, «arte é liberdade, é fantasia, é descoberta e é sonho (…). Matar a liberdade, a imaginação, a fantasia, a descoberta e o sonho seria matar a criatividade artística e negar a própria arte, as suas origens, a sua evolução e o seu valor como atributo específico do género humano».

Image 12855

Da Faculdade de Direito à Guerra Civil de Espanha

A vida de Álvaro Cunhal – aí incluídos os mais de 12 anos passados nas prisões fascistas – ficou marcada por uma intensa actividade intelectual, repartida por disciplinas e áreas das mais diversas, desde a elaboração de um notável corpo de pensamento histórico e teórico até à investigação e à análise históricas, à tradução e à criação literária, ao desenho e à pintura, à reflexão sobre arte e estética.

Essa multifacetada actividade intelectual foi acompanhada, e integrou, uma singular intervenção militante, decorrente do facto de a adesão de Álvaro Cunhal ao ideal comunista ter sido uma opção de vida, concretizada com a sua dedicação ao Partido Comunista Português, ao qual aderiu aos 17 anos de idade, na mesma altura em que entrou para a Faculdade de Direito de Lisboa. Iniciou assim a entrega total à luta por uma sociedade sem explorados nem exploradores, pela liberdade, pela democracia, pela defesa dos interesses dos trabalhadores, do povo, de Portugal.

Em 1936, Álvaro Cunhal, então com 22 anos, é enviado a Madrid pela direcção do PCP com uma missão específica. Face ao desencadeamento do golpe fascista de Franco participa em actividades de resistência. Mais tarde, com o pseudónimo de Manuel Tiago, fará desta experiência o tema de uma novela, «A Casa de Eulália».

Image 12865

A prisão e a clandestinidade

Pouco depois do regresso de Espanha, Álvaro Cunhal foi preso pela polícia fascista. Apesar das brutais torturas a que foi submetido, recusou-se a prestar declarações. Libertado um ano depois, vai cumprir o serviço militar na Companhia Disciplinar de Penamacor – experiência que viria a ser motivo de inspiração para, muitos anos passados, escrever «Os Corrécios e Outros Contos».

Preso pela segunda vez em Maio de 1940, é sob prisão que irá defender a sua tese de licenciatura em Direito: «O aborto, causa e soluções». Libertado seis meses depois, passa em permanência à clandestinidade como funcionário do Partido Comunista Português.

Entretanto, o jovem Álvaro Cunhal colaborava intensamente em várias revistas e jornais (Liberdade, O Diabo, Sol Nascente, Seara Nova, Vértice) com textos políticos e filosóficos e sobre artes plásticas e literatura – textos que evidenciavam já uma inequívoca assimilação do marxismo com reflexão própria. Iniciara-se também no desenho e na pintura, sendo autor da capa e ilustrações dos primeiros romances do neo-realismo português, «Esteiros», de Soeiro Pereira Gomes.

Image 12859

A reorganização e os «passeios» no Tejo

Na década de 40, Álvaro Cunhal participa no processo de reorganização do PCP. Foi o tempo dos célebres passeios de fragata no Tejo, essa forma engenhosa promovida pelos comunistas para a realização de encontros e reuniões de intelectuais, iludindo a vigilância da polícia fascista – passeios organizados por Alves Redol, António Dias Lourenço e Soeiro Pereira Gomes e nos quais participavam, entre muitos outros, Álvaro Cunhal, Fernando Lopes-Graça, Manuel da Fonseca, Mário Dionísio, Sidónio Muralha, Alexandre Cabral, Carlos de Oliveira, Carlos Pato e Fernando Piteira Santos.

Image 12888

Prisão e isolamento

Em Março de 1949, Álvaro Cunhal é preso na casa clandestina que habitava, no Luso. É colocado na Penitenciária de Lisboa, onde fica sob um regime de segurança máxima jamais aplicado a qualquer outro preso político: os primeiros 14 meses em total incomunicabilidade, seguidos de cerca de sete anos de rigoroso isolamento – sempre fechado numa cela onde o Sol não entrava e sob apertada vigilância dos pides.

Posteriormente, ficcionará essa experiência em dois livros: «A Estrela de Seis Pontas» e «Sala 3 e Outros Contos», assinando Manuel Tiago.

Em Maio de 1950, é julgado no Tribunal Plenário de Lisboa. Ali, passando de acusado a acusador, denuncia frontalmente o regime salazarista e as suas práticas opressoras, exploradoras, terroristas e de submissão ao imperialismo.

Image 12889

Notável trabalho criador

Nas severas condições prisionais a que está sujeito – e que visam abatê-lo física e moralmente – Álvaro Cunhal resiste trabalhando intensamente. Ao mesmo tempo que faz da prisão um espaço de luta e trava um incessante combate pelos seus direitos enquanto preso político, desenvolve um notável e diversificado trabalho criador, bem expressivo da sua singular personalidade intelectual.

Escreve dois importantes ensaios: «As lutas de classes em Portugal nos fins da Idade Média» e «Contribuição para o Estudo da Questão Agrária». Traduz o «Rei Lear» de Shakespeare. Reflecte e escreve sobre «A Origem das Espécies» de Darwin. Escreve ficção literária, os romances «Cinco Dias, Cinco Noites» e «Até Amanhã, Camaradas». Escreve sobre arte e estética: «Cinco notas sobre forma e conteúdo». Produz os «Desenhos na Prisão» e «Projectos».

Image 12863

Solidariedade internacional

Nos anos 50, desenvolve-se uma ampla campanha internacional de solidariedade com Álvaro Cunhal. Por todo o mundo, trabalhadores, estudantes, intelectuais, homens e mulheres das artes e das letras exigem a sua libertação. O grande poeta chileno Pablo Neruda dedica um poema a Álvaro Cunhal.

Image 12867

A Fuga de Peniche

Ocorreu no dia 3 de Janeiro de 1960 e foi uma das mais importantes fugas de toda a história do fascismo. Com ela, dez presos, entre eles Álvaro Cunhal, evadiram-se da mais segura prisão do fascismo – o Forte de Peniche – e, recuperando a liberdade, retomaram a luta clandestina nas fileiras do PCP.

A fuga de Peniche teve repercussões imediatas na actividade, na dinâmica e no conteúdo da intervenção do PCP, que nos anos seguintes iria organizar e dirigir algumas das mais relevantes lutas contra a ditadura, designadamente as poderosas manifestações de massas do ano de 1962, como a luta dos estudantes do Superior, a realização do maior 1.º de Maio durante o fascismo e a conquista das oito horas pelos assalariados rurais da zona do latifúndio.

Image 12860

«Rumo à Vitória»: anúncio de Abril

Em 1964, Álvaro Cunhal escreve «Rumo à Vitória», obra maior da sua produção política e teórica, marco impressivo do pensamento político marxista-leninista no nosso País – que virá a constituir a base essencial do Programa para a Revolução Democrática e Nacional, aprovado pelo VI Congresso do PCP, em 1965.

É um trabalho de leitura indispensável para quem queira conhecer a história de Portugal durante o regime fascista: a política de opressão e terror, os crimes cometidos, as condições de exploração dos trabalhadores e do povo português pelo poder dos monopólios e dos latifúndios – e a resistência antifascista.

«Rumo à Vitória» define os caminhos para o derrubamento do fascismo e é como que o anúncio do 25 de Abril libertador.

Image 12869

Revolução e contra-revolução

Nos dias e meses que se seguem ao 25 de Abril materializaram-se as grandes conquistas da Revolução. A liberdade; os direitos políticos, laborais e sociais; as nacionalizações; a Reforma Agrária; o poder local democrático afirmam-se como pilares essenciais do País novo em construção – a par do reconhecimento da independência dos povos das colónias e do fim da guerra colonial e do estabelecimento de relações com todos os países e povos do planeta. A Constituição da República Portuguesa, aprovada em 1976, consagrando estas conquistas, apresenta-se como matriz da mais avançada democracia alguma vez existente em Portugal.

A história da Revolução de Abril é tratada por Álvaro Cunhal na sua obra «A Revolução Portuguesa – o Passado e o Futuro». Aí aborda, igualmente, os primeiros passos dados pela contra-revolução – tema que desenvolverá e aprofundará mais tarde em «A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril – a contra-revolução confessa-se».

Álvaro Cunhal integrou os primeiros quatro governos provisórios, três dos quais presididos pelo General Vasco Gonçalves. Em 1975 foi eleito para a Assembleia Constituinte e para deputado na Assembleia da República nas eleições realizadas de 1976 a 1987. De 1985 a 1992 foi membro do Conselho de Estado.

Image 12865

Profícua reflexão

Em 1985, na continuidade da reflexão a que vinha a proceder ao longo de décadas, Álvaro Cunhal publica outra das suas obras de referência, «O Partido com Paredes de Vidro». E anos depois, em 1996 – também dando expressão a um processo de reflexão iniciado na juventude – expõe os seus conceitos sobre arte e estética no ensaio, que é também uma proposta de reflexão, «A arte, o artista e a sociedade».

Image 12868

Indivíduo multifacetado

Álvaro Cunhal foi um indivíduo multifacetado, alguém que teve uma vida que é resultado de uma opção sustentada, assim como o seu rosto é o rosto de uma causa, cedo escolhida e para sempre mantida. Intelectual e artista comunista, Álvaro Cunhal encarou e praticou a política e as artes como um trabalho de transformação do mundo e da vida, um trabalho incendiado por uma paixão criadora.

Militante dedicado do Partido que ajudou a construir e no qual deixou a sua marca, Álvaro Cunhal é simultaneamente um indivíduo histórico cuja excepcionalidade só pode ser compreendida à luz da dialética da sua formação por esse mesmo Partido.

O seu legado, o seu exemplo, o seu pensamento, o seu trabalho, o seu contributo na luta revolucionária é património do seu Partido, o Partido Comunista Português, é património político e cultural dos trabalhadores e do povo português, é património da causa internacional da luta de emancipação dos trabalhadores e dos povos.

Um legado de vida, pensamento e luta que se projecta na actualidade e no futuro, ao serviço dos trabalhadores, do povo e da pátria.

 

Image 12853

* Texto do guião da sessão cultural evocativa, lido por Cândido Mota. O título e os subtítulos são da responsabilidade da redacção.



Mais artigos de: Em Foco

Há homens que nunca morrem

A sessão cultural evocativa de Álvaro Cunhal, que na tarde de sábado fez transbordar a Aula Magna da Universidade de Lisboa, é um momento que ficará na memória de todos quantos nela participaram. Para além de um espectáculo irrepreensível, com alguns dos melhores artistas portugueses da actualidade, houve emoções de sobra, numa demonstração inequívoca de que há homens que nunca morrem.

Figura fascinante e de invulgar inteligência

Permitam-me que vos dirija umas escassas palavras que serão essencialmente de agradecimento a todos os que proporcionaram esta magnífica iniciativa e para, desde já, expressar a nossa imensa alegria de vermos reunidos neste acto eminentemente cultural evocativo de...

Tudo depende da nossa vontade

O reitor da Universidade de Lisboa, António Sampaio da Nóvoa, que interveio na qualidade de anfitrião da sessão, manifestou a sua satisfação por ver a Aula Magna repleta em homenagem a um antigo aluno da Universidade e membro do seu Senado, em...

Uma obra que é património do povo

Boa tarde a todos e o nosso agradecimento pela vossa participação nesta sessão cultural evocativa – a dimensão intelectual, artística, humana e militante de Álvaro Cunhal. Uma homenagem a que se associou um conjunto de personalidades –...

Reconhecimento de uma vida

Fizeram questão de marcar presença na sessão cultural evocativa de Álvaro Cunhal inúmeras personalidades das mais variadas áreas de actividade. Para além dos que prestaram homenagem a partir do palco, muitos outros compareceram. Na...

Eusébio enviou mensagem

Marcaram presença na sessão diversas das personalidades do mundo da cultura, das artes, do trabalho e do desporto que integraram a sua comissão promotora. Entre elas estavam os antigos futebolistas Hilário e Carlos Manuel. Eusébio, que fez igualmente parte da comissão,...

Grande exposição em Lisboa

É inaugurada a 27 de Abril a grande exposição central das comemorações do centenário do nascimento de Álvaro Cunhal, com o lema «Vida, pensamento e luta: exemplo que se projecta na actualidade e no futuro». A mostra estará...

«Os Barrigas e os Magriços» chega ao teatro

Integrada nas comemorações do centenário do nascimento de Álvaro Cunhal estreia em breve a peça para a infância «Os Barrigas e os Magriços», a partir de um conto homónimo de Álvaro Cunhal. A peça é uma...

A prisão no Luso

Mais de uma centena de pessoas participaram, no domingo, na Mealhada, numa sessão evocativa da prisão de Álvaro Cunhal na casa clandestina que habitava, no Luso, a 25 de Março de 1949. Na ocasião foram igualmente presos o também membro do Secretariado, Militão Ribeiro...