O Tribunal (in)Constitucional

Bernardino Soares (Membro da Comissão Política)

A decisão do Tribunal Constitucional há uma semana atrás, considerando inconstitucionais os cortes dos subsídios de férias e de Natal dos trabalhadores da Administração Pública, tem inegável importância política e social. Para milhares de trabalhadores, reformados e aposentados esta decisão veio ao encontro do seu direito à remuneração e à reforma ou pensão, que o Governo visou retirar, provavelmente de forma definitiva.

O TC procura consagrar a vinculação do País ao pacto de agressão

Image 10886

Mas não é possível esconder que a fundamentação do acórdão inclui aspectos que merecem discordância e contestação. É evidente que não foi indiferente o facto de o requerimento de fiscalização da constitucionalidade, apresentado por deputados do PS e pelo BE, se centrar na violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade. Procurava encaixar na justificação de decisão anterior do TC em relação aos cortes de 2011, que afirmava estarem estes ainda dentro dos «limites do sacrifício». Em nenhum momento se invocou a proteção constitucional do direito à retribuição como fundamento para a declaração de inconstitucionalidade.

O Tribunal Constitucional assentou por isso o seu acórdão na ideia de que a diferenciação do sacrifício imposto aos trabalhadores da Administração Pública, aos reformados e aos pensionistas, era já muito grande em relação a outros trabalhadores – daí a inconstitucionalidade declarada. Tal facto foi logo aproveitado pelo primeiro-ministro no próprio dia para insinuar que a resposta do Governo seria o alargamento dos cortes a todos os trabalhadores e reformados, logo secundado pela habitual galeria de comentadores de serviço.

 

Três elementos negativos

 

Mas a argumentação da decisão do Tribunal Constitucional contém ainda outros três elementos negativos.

Em primeiro lugar, procura consagrar constitucionalmente, de forma absolutamente enviesada, a vinculação do nosso País ao chamado «memorando de entendimento» a que muito justamente chamamos pacto de agressão. Justificar as gravíssimas violações da nossa soberania, de direitos fundamentais e outras orientações da Constituição com o simples facto de se tratar de documentos assinados por PS, PSD e CDS com instituições internacionais (o FMI e a UE) em que Portugal se integra, constitui uma menorização da Lei Fundamental que não aceitamos. Será que o Tribunal Constitucional considera também aceitável que a sua jurisdição seja transferida para tribunais europeus como pretende o Tratado Orçamental recentemente aprovado por PSD, PS e CDS na Assembleia da República?

Em segundo lugar, a argumentação do Tribunal Constitucional tende a assumir como válida a obsessão da redução do défice das contas públicas de forma brutalmente acelerada. Essa suposta obrigação está na base deste acórdão, tal como do que anteriormente considerou constitucionais os cortes médios de 5% (em 2011, antes do corte dos subsídios) nos salários dos trabalhadores da Administração Pública. No momento em se discute a inclusão dos limites sobre o défice ou a dívida pública na Constituição, o Tribunal Constitucional procede como se já tivesse assumido avant la lettre essa disposição, erigida em valor superior a todos os que estão garantidos na Lei Fundamental, o que confirma a inaceitabilidade da adoção daquela norma.

Em terceiro lugar, o Tribunal Constitucional decide de forma inédita e incompreensível (usando aliás também o argumento de que a contenção do défice em 4,5% do PIB em 2012 é «um objectivo de excepcional interesse público») que a decisão de inconstitucionalidade fica suspensa até 2013, o que é inaceitável e aliás contraditório com o próprio acórdão. É que o Tribunal Constitucional, ao mesmo tempo que conclui que o interesse público a preservar não justifica o corte nos subsídios por introduzir uma diferenciação dos atingidos para além dos «limites do sacrifício», decide depois não aplicar a decisão em 2012 por razões de… «excepcional interesse público»!

 

Derrota política do Governo

 

Apesar da limitação dos seus efeitos e de fundamentações que rejeitamos, a decisão do Tribunal Constitucional constitui efectivamente uma derrota política do Governo, indissociável da profunda erosão da sua base de apoio e de uma crescente e alargada contestação à sua política, que nenhum malabarismo discursivo é capaz de esconder.

Tal como a aprovação das alterações ao Código do Trabalho não implica nenhuma aplicação automática das malfeitorias ali inscritas nas empresas e sectores, também aqui a decisão do Tribunal Constitucional não impede a reposição imediata dos subsídios, nem legitima a imposição de cortes a todos os trabalhadores.

E, como sempre, a luta é que conta e determina o andamento do processo político.



Mais artigos de: Opinião

Uns piores do que outros

Afirma o primeiro-ministro que as culpas da situação dramática a que o País chegou são dos anteriores governos do PS. Tal afirmação, que está a meio caminho de ser verdadeira, está a igual distância de ser falsa - e é bem certo que ela foi...

Mistérios do Raton

O recente acórdão constitucional constituirá, pelos vários mistérios que encerra e por algumas certezas que desvenda, um caso de obrigatória investigação. Em suma, a douta coisa, por esta síntese menos rendilhada mas mais acessível à...

Foram vocês que pediram?

«Juro, por minha honra,… defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa». Este é o mais importante conteúdo do juramento solene que o cidadão mais votado nas eleições para a Presidência da República tem que...

Os bandeirinhas

Há um adorno que, pelos vistos, se tornou obrigatório no trajar dos actuais governantes: a bandeira nacional em miniatura e ostentada na ombreira de todos os membros do Governo, à americana (tinha de ser...) e à parolo (o que o finíssimo senso destes protagonistas não descortinou...

A independência da Argélia

Passam 50 anos sobre a data da proclamação, em 5 de Julho de 1962, da independência da Argélia. Trata-se de um acontecimento de alcance histórico que é importante assinalar, lembrando o que a revolução argelina, uma revolução nacional libertadora de...