O Tribunal (in)Constitucional
A decisão do Tribunal Constitucional há uma semana atrás, considerando inconstitucionais os cortes dos subsídios de férias e de Natal dos trabalhadores da Administração Pública, tem inegável importância política e social. Para milhares de trabalhadores, reformados e aposentados esta decisão veio ao encontro do seu direito à remuneração e à reforma ou pensão, que o Governo visou retirar, provavelmente de forma definitiva.
O TC procura consagrar a vinculação do País ao pacto de agressão
Mas não é possível esconder que a fundamentação do acórdão inclui aspectos que merecem discordância e contestação. É evidente que não foi indiferente o facto de o requerimento de fiscalização da constitucionalidade, apresentado por deputados do PS e pelo BE, se centrar na violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade. Procurava encaixar na justificação de decisão anterior do TC em relação aos cortes de 2011, que afirmava estarem estes ainda dentro dos «limites do sacrifício». Em nenhum momento se invocou a proteção constitucional do direito à retribuição como fundamento para a declaração de inconstitucionalidade.
O Tribunal Constitucional assentou por isso o seu acórdão na ideia de que a diferenciação do sacrifício imposto aos trabalhadores da Administração Pública, aos reformados e aos pensionistas, era já muito grande em relação a outros trabalhadores – daí a inconstitucionalidade declarada. Tal facto foi logo aproveitado pelo primeiro-ministro no próprio dia para insinuar que a resposta do Governo seria o alargamento dos cortes a todos os trabalhadores e reformados, logo secundado pela habitual galeria de comentadores de serviço.
Três elementos negativos
Mas a argumentação da decisão do Tribunal Constitucional contém ainda outros três elementos negativos.
Em primeiro lugar, procura consagrar constitucionalmente, de forma absolutamente enviesada, a vinculação do nosso País ao chamado «memorando de entendimento» a que muito justamente chamamos pacto de agressão. Justificar as gravíssimas violações da nossa soberania, de direitos fundamentais e outras orientações da Constituição com o simples facto de se tratar de documentos assinados por PS, PSD e CDS com instituições internacionais (o FMI e a UE) em que Portugal se integra, constitui uma menorização da Lei Fundamental que não aceitamos. Será que o Tribunal Constitucional considera também aceitável que a sua jurisdição seja transferida para tribunais europeus como pretende o Tratado Orçamental recentemente aprovado por PSD, PS e CDS na Assembleia da República?
Em segundo lugar, a argumentação do Tribunal Constitucional tende a assumir como válida a obsessão da redução do défice das contas públicas de forma brutalmente acelerada. Essa suposta obrigação está na base deste acórdão, tal como do que anteriormente considerou constitucionais os cortes médios de 5% (em 2011, antes do corte dos subsídios) nos salários dos trabalhadores da Administração Pública. No momento em se discute a inclusão dos limites sobre o défice ou a dívida pública na Constituição, o Tribunal Constitucional procede como se já tivesse assumido avant la lettre essa disposição, erigida em valor superior a todos os que estão garantidos na Lei Fundamental, o que confirma a inaceitabilidade da adoção daquela norma.
Em terceiro lugar, o Tribunal Constitucional decide de forma inédita e incompreensível (usando aliás também o argumento de que a contenção do défice em 4,5% do PIB em 2012 é «um objectivo de excepcional interesse público») que a decisão de inconstitucionalidade fica suspensa até 2013, o que é inaceitável e aliás contraditório com o próprio acórdão. É que o Tribunal Constitucional, ao mesmo tempo que conclui que o interesse público a preservar não justifica o corte nos subsídios por introduzir uma diferenciação dos atingidos para além dos «limites do sacrifício», decide depois não aplicar a decisão em 2012 por razões de… «excepcional interesse público»!
Derrota política do Governo
Apesar da limitação dos seus efeitos e de fundamentações que rejeitamos, a decisão do Tribunal Constitucional constitui efectivamente uma derrota política do Governo, indissociável da profunda erosão da sua base de apoio e de uma crescente e alargada contestação à sua política, que nenhum malabarismo discursivo é capaz de esconder.
Tal como a aprovação das alterações ao Código do Trabalho não implica nenhuma aplicação automática das malfeitorias ali inscritas nas empresas e sectores, também aqui a decisão do Tribunal Constitucional não impede a reposição imediata dos subsídios, nem legitima a imposição de cortes a todos os trabalhadores.
E, como sempre, a luta é que conta e determina o andamento do processo político.