Desde Assunção
Escrevo na saída de Assunção. A visita que a delegação do GUE/NGL fez ao Paraguai, com o objectivo expresso de condenar o golpe de Estado e demonstrar a nossa solidariedade internacionalista com o povo – a nossa, também, dos comunistas portugueses – foi certamente muito frutífera. Deixou as pessoas que contactámos – que resistem, com esperança no futuro e muito medo do passado – com os olhos mais motivados e deixou também os golpistas, e a corja dos meios de comunicação que os servem, totalmente irritados. Porque os primeiros deputados europeus que visitaram o país depois do golpe, que depôs o legítimo presidente Fernando Lugo, recusaram-se liminarmente a reunir com os golpistas. Porque não compreendem que quem exige a restituição da democracia no país não poderia nunca reunir-se com aqueles a quem não reconhece legitimidade e que operaram toda uma campanha contra a vontade do povo soberano do Paraguai.
O Paraguai é um país que espelha ainda mais as desigualdades sociais e económicas extremadas, que conhecemos serem uma constante nos países latino-
-americanos. Aqui, a riqueza mais disputada é a terra imensa e fértil que está na mão de um punhado de latifundiários – a oligarquia terrateniente que beneficiou mais do que ninguém dos 60 anos de governação do partido de direita Colorado e da terrível ditadura stroessnista, que torturou e assassinou quantos lhe resistiram, como foi o caso de tantos militantes do Partido Comunista Paraguaio. A impunidade da ditadura e do ditador, das famílias que lhe eram próximas, dos seus negócios corruptos, do enriquecimento sem controlo, a total isenção de pagamento de impostos sobre os rendimentos (no Paraguai, o sistema fiscal é frágil e quase inexistente) deram à vitória do presidente Lugo, em 2008, um significado histórico e uma esperança sem precedentes à possibilidade remota de mudança política, a qual hoje o povo paraguaio não quer deixar escapar. Como nos foi dito, com esta história recente, sanguinária e ditatorial, tão presente ainda nos círculos do poder político e económico, a vitória de Lugo «foi um milagre». É certo que o exercício do poder executivo de Lugo foi peculiar, complexo e muitas vezes, bem abaixo das expectativas do povo paraguaio. Um sistema político e institucional, que coloca toda a possibilidade de acção na vontade parlamentar conjuntamente com uma maioria do Partido Colorado e do Partido Liberal Radical (um partido tradicional que apoiou a candidatura presidencial de Lugo), desde cedo foram os ingredientes para bloquear as tentativas políticas mais progressistas do presidente e levaram-no a cedências e negociações com a direita. Mas embora as limitações da sua acção tenham sido bastantes, as organizações sociais com quem falámos relataram-nos conquistas sociais importantíssimas para o povo paraguaio – a ampliação da educação pública, de um sistema de saúde público e gratuito, que permitiu que muitos tivessem acesso a cuidados de saúde pela primeira vez, a implementação de um rendimento mensal para os idosos, os apoios dados às populações dos bairros urbanos auto-construídos, o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas, entre outros. Os paraguaios sabem quem é a primeira vítima do golpe de Estado palaciano que foi levado a cabo – o povo. Será ao povo que serão retirados os direitos sociais conquistados, será ao povo que serão limitadas as suas liberdades democráticas fundamentais num país governado por golpistas, será o povo o primeiro a sofrer com os retrocessos sociais que a oligarquia paraguaia sonha impor. É certo que o Paraguai era um dos elos mais fracos – senão o mais fraco – de um conjunto de países nos quais a direita, os interesses económicos e financeiros, a CIA e as embaixadas dos EUA conspiram diariamente para deitar abaixo os governos democraticamente eleitos, e que, nesse sentido esta foi uma operação facilitada. O perigo do Paraguai ser um enclave da direita e do governo dos EUA no conjunto dos países da América do Sul, é agora uma possibilidade real e bastante perigosa para o processo de integração regional progressista em curso. Mas tudo ainda está em aberto. E os paraguaios não parecem dispostos a desistir da sua janela de esperança aberta com Lugo. Todas as noites concentram--se em frente à televisão pública paraguaia, com o apoio dos trabalhadores, produtores e operadores de câmara que fazem a cobertura resistente dos protestos, e gritam contra os golpistas, empunham cartazes, tocam, cantam emotivamente pelo futuro do povo, pelo respeito pela decisão do povo soberano em eleger Fernando Lugo. Gritam e cantam pelo futuro, contra o passado do Paraguai.