Produção nacional e soberania alimentar em perigo
No âmbito do Grupo Confederal da Esquerda Unitária Europeia/Esquerda Verde Nórdica (GUE/NGL) do Parlamento Europeu, o PCP promoveu, dia 1, em Espinho, um debate que analisou as consequências das propostas conhecidas para a reforma da Política Agrícola Comum (2013-2020).
Reforma da PAC penaliza pequena e média agricultura
A iniciativa foi aberta pelo deputado do PCP, João Ferreira, após Carlos Gonçalves, da Comissão Política do PCP, ter apresentado os objectivos do debate e os membros da mesa, em que estavam Agostinho Lopes, membro do CC e deputado na Assembleia da República, bem como os convidados estrangeiros, Michaela Boyle, em representação do representante do Sinn Féin, da Irlanda, e Eduardo Navarro, da Izquierda Unida, de Espanha. Impedido de se fazer representar, decerto por compromissos na campanha eleitoral, o Partido Comunista da Grécia enviou uma contribuição escrita ao debate.
Ao longo dos trabalhos, encerrados por João Frazão, membro da Comissão Política do PCP, intervieram representantes de diversas organizações ligadas à agricultura e ao mundo rural, nomeadamente, João Dinis, da Confederação Nacional da Agricultura, Pedro Pimentel, da Associação Nacional dos Industriais de Lacticínios, Albino Silva, da Associação da Lavoura do Distrito de Aveiro (ALDA), José Lobato, da Associação de Produtores de Leite e Carne (APLC), Manuel Rodrigues, da Federação Nacional dos Baldios (Baladi), e Júlio Costa, da Cooperativa Agrícola da Mealhada.
Extractos da intervenção de João Ferreira
Uma reforma que prossegue o caminho da ruína
«(…) O mote deste debate – “Perigos para as produções nacionais” – contém em si já uma apreciação da proposta de reforma em cima da mesa. Uma proposta que não altera as traves mestras da actual PAC; uma proposta que representa o prosseguir do mesmo caminho que conduziu a agricultura portuguesa à precária condição em que hoje se encontra.
Como até aqui, em causa continuará o direito à soberania e à segurança alimentares dos diferentes estados-membros, o seu direito a produzir. (…)
Vejamos alguns (e apenas alguns) dos aspectos mais significativos da proposta de reforma da PAC em discussão.
Em relação aos pagamentos directos (o chamado 1.º Pilar), prevê-se a aplicação de um novo “regime de pagamento de base”, com um sistema uniforme por hectare a nível nacional ou regional.
O objectivo, diz a Comissão Europeia, para além da simplificação de regras, consiste em reduzir as discrepâncias entre os níveis dos pagamentos entre agricultores, entre regiões e entre países.
Estas desigualdades na distribuição dos pagamentos – entre agricultores, dentro de cada país, e entre países – são, de facto, um dos maiores escândalos da actual PAC! (…)
Vejamos alguns números (dados do Eurostat, fornecidos pelo MAMAOT):
Portugal tem uma Superfície Agrícola Útil (SAU) que corresponde a 2,2% do total da UE. Em termos de Unidades de Trabalho Agrícola o peso é um pouco superior: 3,1% do total da UE. Mas o total dos pagamentos directos dirigidos a Portugal (total de verbas do 1.º Pilar) não representa mais do que 1,3% do total da UE.
E mesmo que somemos a estas as verbas do 2.º Pilar, considerando o total de verbas da PAC transferidas para o país, continuaríamos a ter um valor ainda inferior ao peso da SAU nacional no conjunto da UE.
Cedendo às pressões das grandes potências, vem agora a Comissão propor uma redução – note-se bem, uma redução, e não uma eliminação, como se exigia! – das discrepâncias. Vejamos de que redução se trata...
A proposta é que aqueles que recebem menos de 90% do pagamento médio por hectare da UE vejam a distância para esses 90% encurtada em um terço. Consequência prática? Portugal, que actualmente recebe uma média de 154 euros por hectare de pagamentos directos (61% da média da UE, que é de 251 euros por hectare), passaria a receber na futura PAC uma média de 167 euros por hectare (o equivalente a dois terços, 66%, da média da UE). O peso dos pagamentos directos a atribuir a Portugal face ao conjunto da UE passará dos actuais 1,3% para 1,4% (números divulgados pelo MAMAOT).
Se no plano nacional – onde, como bem sabemos, também existem enormes desigualdades na distribuição das ajudas – se prevê uma convergência, com a introdução da “ajuda uniforme” por hectare em 2019, já no plano da UE, a Comissão propõe-se realizar a “plena convergência” entre países, com a chamada “ajuda uniforme”, apenas daqui a dois quadros comunitários, ou seja, em 2028. Até lá, continua a vigorar a referência histórica na atribuição de pagamentos. Repito e sublinho: 2028! (…)
No novo desenho dos pagamentos directos, o pagamento de base será complementado por outros prémios – o mais significativo é o chamado pagamento ecológico (por hectare), que consiste numa ajuda obrigatória através do cumprimento de certas práticas culturais compatíveis com a preservação do ambiente. 30% das dotações nacionais serão destinadas a este pagamento. É o chamado “greening” ou “esverdejamento”.
De que práticas culturais estamos a falar, para se poder receber o pagamento ecológico?
São três as medidas previstas: 1) a manutenção de pastagens permanentes; 2) a diversificação das culturas (um agricultor tem de praticar pelo menos três culturas diferentes nas suas terras aráveis, nenhuma das quais deve ocupar mais de 70% das terras e a terceira pelo menos 5% da superfície arável); e 3) a manutenção de uma “superfície de interesse ecológico” de, pelo menos, 7% das terras agrícolas (com exclusão dos prados permanentes) – isto é bordaduras, sebes, árvores, terras em pousio, características paisagísticas, biótopos, faixas de protecção e superfícies florestadas. (…)
Grandes explorações privilegiadas
Mais uma vez, toma-se como referência, privilegiando-a, a realidade das grandes explorações do Norte e Centro da Europa, esquecendo-se a situação específica – e distinta – dos países do Sul, como Portugal. A consideração da realidade específica dos diferentes países levaria necessariamente à reconsideração dos limiares propostos no que se refere à prática da diversificação das culturas e da superfície de interesse ecológico. Levaria a reconhecer sistemas e práticas como o montado, o olival ou a cultura do arroz, entre outros, como exemplos de práticas que devem poder ser compatíveis com o tal “esverdejamento”, atendendo ao inquestionável valor ecológico que podem ter alguns destes agro-sistemas.
Outro pagamento complementar ao pagamento de base, serão os referentes às “Zonas com condicionalismos naturais”. Estas zonas são definidas com base nas regras do desenvolvimento rural, que prevê as opções relativas às chamadas Zonas Desfavorecidas. (…)
Os perigos são evidentes: perante a diversidade de situações existentes, a complexidade da tarefa de definir critérios uniformes pode resultar, mais uma vez, na desadequação dos critérios a realidades específicas de alguns países. Podem sair prejudicadas algumas das regiões mais pobres da UE, e podem agravar-se, ainda mais, as desigualdades e injustiças existentes na distribuição das verbas da PAC.
Voltando aos pagamentos, a filosofia geral continua a ser a do desligamento das ajudas à produção. Admite-se um possível pagamento ligado, limitado todavia ao pouco que já vem de trás. No máximo, 10% da dotação nacional.
Outro pagamento complementar – o dos jovens agricultores – assim como o regime específico dos pequenos agricultores agora proposto, no contexto mais amplo da reforma proposta, terão mais efeitos propagandísticos do que outra coisa. (…)
Quanto ao regime específico para os pequenos agricultores, a Comissão prevê um pagamento entre 500 e 1000 euros por ano, por produtor, em explorações com dimensão até 3ha. Na aplicação concreta a Portugal, os critérios propostos levarão à fixação deste pagamento em torno do limite inferior deste intervalo, ou seja, os 500 euros. 500 euros por ano, por produtor. Este valor, destinado às pequenas explorações, contrasta com o limite superior agora proposto para as grandes explorações: 300 mil euros, ou seja, 600 vezes mais. (…)
O desmantelamento da regulação
[É ainda de referir] o mais relevante e mais gravoso aspecto desta reforma: o prosseguimento do desmantelamento dos instrumentos de regulação da produção e dos mercados – indispensáveis para garantir preços justos à produção. O que por sua vez é indispensável para inverter o declínio do mundo rural e para inverter também o défice da balança agro-alimentar nacional.
A intervenção pública, já em níveis manifestamente insuficientes, é agora reduzida às intervenções de emergência, quando o que era necessário era reforçá-la para, precisamente, evitar as emergências! A insistência na "orientação para o mercado” e para a “competitividade", desregulando a produção e desregulando os mercados, agravará a pressão para a baixa dos preços à produção, o problema central que hoje enfrentam os agricultores, em especial os pequenos produtores, com larga prevalência no tecido rural nacional.
A Comissão insiste na eliminação das quotas leiteiras – cujo efeito é já hoje violentamente sentido, em virtude de uma aterragem que, como a vida o demonstrou, foi tudo menos suave. Insiste também na eliminação dos direitos de plantação da vinha, ao mesmo tempo que se apresta a terminar também com o regime de quotas do açúcar.
O que se está a criar são situações verdadeiramente liquidatárias de sectores que já hoje enfrentam visíveis dificuldades, como o da produção leiteira e o da vinha. Em qualquer dos casos, a consequência previsível e já sentida será o "encharcamento" do mercado nacional por produção estrangeira e uma pressão ainda maior para a baixa dos preços na produção. (…)
O desmantelamento dos instrumentos de regulação da produção e dos mercados é agravado pelas consequências da política comercial da UE, fundada no livre comércio. A agricultura foi e é a moeda de troca para abrir a porta de mercados de países terceiros aos grandes interesses industriais e dos serviços das principais potências da UE. (…)
A mobilização e a luta dos agricultores e das suas organizações, do mundo rural, mas mais do que isso, da generalidade da população em torno de objectivos de indiscutível estratégico nacional, serão determinantes para o desfecho deste processo. (…)»
Extractos da intervenção de João Frazão
Um retrato da agricultura portuguesa
«(…) Vejamos o retrato da agricultura nacional em sete pontos:
1. Nos últimos 20 anos, Portugal perdeu 300 mil explorações agrícolas, a uma média de 41 explorações por dia, quase duas, a cada hora que passa.
2. Nos últimos dez anos, a superfície agrícola recuou em meio milhão de hectares.
3. No entanto o número de grandes explorações aumentou, num movimento de concentração da propriedade fundiária. Hoje, 91% das explorações (as pequenas e médias) detêm menos de 30% da terra, enquanto apenas 260 explorações detêm mais de 12% do total da superfície agrícola nacional.
4. A nossa população agrícola está muito envelhecida, sendo que mais de metade tem mais de 65 anos.
5. O rendimento dos agricultores diminuiu. Só no último ano, fruto da conjugação do aumento especulativo dos factores de produção e do esmagamento dos preços à produção, o rendimento dos agricultores em Portugal caiu 10%.
6. Apenas 6% dos agricultores português vivem exclusivamente da agricultura.
7. O défice agrícola Português chega hoje aos 3700 milhões de euros.
O ponto de partida da agricultura Portuguesa para esta reforma da PAC é, sublinhe-se, muito mau. E nem os recentes investimentos em olival intensivo ou em hortofrutícolas atenuam a grave crise que o sector atravessa.
O olival intensivo e super-intensivo, com particular incidência nos campos do Alentejo e do Ribatejo, e que hoje aproveitam das melhores terras irrigadas do país, se pode garantir o auto-aprovisionamento a curto prazo, vai arruinar o olival tradicional, essencial para a paisagem das Beiras, de Trás-os- Montes, do Ribatejo, pela baixa dos preços à produção, uma vez que aumenta a oferta, sendo que, pela natureza dessas explorações agrícolas, que tem como fim imediato e último o lucro, não tardarão a deixar para trás terras abandonadas, completamente exauridas pelo excesso de químicos e de produção.
Quanto às flores, um dos nichos de mercado que seria o futuro, que, nas palavras do ministro de má memória Jaime Silva, “deve estar entre as fileiras prioritárias da agricultura nacional”, ouvimos agora produtores presentes numa das maiores feiras do País, a MercoFlores, que vieram afirmar preto no branco que “o sector das flores está a agonizar com a crise”.
E quanto aos restantes sectores, vieram hoje aqui bastos exemplos dos problemas da agricultura.
Do leite, em que fecham explorações todos os dias e não são já as explorações com três, quatro ou mesmo dez vacas. São já hoje as vacarias com 70, 80, 100 vacas – de média dimensão no nosso país – cujos proprietários se vêem a braços com a tenaz que os aperta, com os elevadíssimos encargos com os créditos bancários que fizeram, para crescer, para ser competitivos – como sempre lhes incutiu a propaganda oficial – e para responder às exigências legais, com os incomportáveis custos dos factores de produção (como hoje aqui se disse só as rações aumentaram de preços três vezes este ano!) e ainda com os preços à produção que não descolam dos 0,30 euros, quando o valor justo teria que andar acima dos 0,45 euros.
No sector do vinho há milhares de vitivinicultores a braços com atrasos de um, dois, três e mais anos no pagamento das uvas que entregaram às adegas cooperativas, que se encontram também em situação muito difícil. Das várias regiões nos chegam informações de que os produtores não têm dinheiro para as curas, e para as tarefas desta exigente cultura.
Leite e vinho, sectores que serão dos mais afectados com as medidas de liberalização do mercado, o fim das quotas leiteiras, previsto para 2015, e o fim os direitos do plantio da vinha, anunciado para 2017.
Creio que não será demais afirmar que só o anúncio dessas medidas teve já impactos muito negativos nas produções nacionais, com os grandes produtores de excedentes a preparem-se para encharcar os mercados, e, particularmente no leite, a encharcarem já como se pode ver pelos mega saldos de leite vindo sabe-se lá de onde, nos grandes hipermercados.
Ao contrário da propalada aterragem suave, o que estes anos de desmantelamento progressivo das quotas leiteiras significaram foi a destruição da produção nacional e a degradação dos rendimentos dos produtores.
Na floresta adensam-se as dificuldades com os produtores a não verem recompensados os anos de trabalho e a não terem quaisquer apoios para o investimento naquela que deve ser considerada uma das jóias da coroa. As medidas do PRODER para a floresta são as que têm menores taxas de execução, 22% na medida “Melhoria produtiva dos povoamentos”; 10% na “Gestão multifuncional da floresta”; 32% “Modernização e capacitação de empresas florestais”; 7% nas três medidas florestais do eixo 2 (gestão sustentável); 3% no Ordenamento e reconversão de povoamentos; 10% na valorização ambiental dos espaços florestais.
Enquanto isso o eucalipto substituiu o pinheiro, o sobreiro recua, as doenças alastram, do nemátodo do pinheiro ao gorgulho do eucalipto, da tinta e do cancro do castanheiro; são aos milhares os sobreiros atingidos pelas doenças e pelo Insecto do Pinhão.
Estando nós num debate sobre a Política Agrícola Comum, será entretanto necessário sublinhar que a culpa não pode ser apenas atirada para Bruxelas, repartindo-se entre o Conselho de Ministros da Agricultura e a Comissão Europeia, e os sucessivos governos nacionais, do PS, PSD e CDS.
Seria um erro profundo isentar os governantes nacionais que, em primeiro lugar, não defenderam os interesses da agricultura portuguesa nas sucessivas negociações na UE. Quem não se lembra dos ares de vitórias sucessivas que ministros, uns atrás dos outros, afivelavam à saída de reuniões, que ditavam sempre um pouco mais de definhamento do sector? E que, mesmo no quadro das apertadas regras europeias, optaram sempre por caminhos de defesa dos grandes agrários e da grande agro-indústria? (…)
Pela nossa parte temos um compromisso firme com os agricultores e com a agricultura portuguesa: defender uma política agrícola que respeite e considere estratégica a agricultura familiar e os pequenos e médios agricultores, que respeite os agricultores, garantindo-lhes rendimentos dignos, em troca da produção realizada, que promova o desenvolvimento integrado da agricultura nas suas dimensões agro-produtiva, agro-ambiental e agro-rural, tendo em conta a inter-relação das situações de pluriactividade e pluri-rendimento, que assegure a soberania alimentar dos povos e a segurança da qualidade alimentar do país, que contribua para a atenuação das assimetrias regionais, e para o estabelecimento de equilíbrios territoriais, nomeadamente demográficos e etários, do espaço rural. Em suma, para defender o desenvolvimento da agricultura e a produção nacional. (…)
Quatro eixos essenciais
Assim, há muito definimos os quatro eixos essenciais para a necessária Reforma da PAC:
Primeiro – Orientar a PAC para a garantia da soberania alimentar de cada povo, condição essencial para garantir a segurança alimentar, apoiando as potencialidades agrícolas de cada país e apoiando todos os que sabem produzir e têm amor à terra. Tal inclui que não prescindimos do direito inalienável de decidir, a cada momento, o que melhor serve os interesses do nosso povo. O que produzir e como produzir.
Segundo – É necessário garantir preços justos à produção. Se houver preços justos, os agricultores produzirão! É preciso abandonar a lógica do mercado e da competitividade que tem presidido à política agrícola das últimas décadas. A agricultura não é uma actividade produtiva qualquer. Ela cumpre uma função social indispensável e insubstituível à sobrevivência da humanidade. Neste quadro são necessárias medidas de regulação dos mercados e de intervenção na formação dos preços dos factores de produção, rejeitando a especulação, e dos preços à produção, impedindo práticas que promovam o abandono das produções, sejam o dumping ou quaisquer outras.
Terceiro – A Reforma da PAC deve assentar numa justa distribuição das ajudas entre países, produções e produtores, garantindo os apoios à pequena e média agricultura e às especificidades de cada país e de cada povo e ligando as ajudas à produção. O que significa dizer que não é aceitável uma perspectiva que admite a manutenção de ajudas que, em Portugal são em média de 154 euros por hectare, para uma média europeia de quase o dobro, havendo países que recebem 4 vezes mais. Assim como não é aceitável que em Portugal cerca de 146 mil dos 194 mil agricultores recebam até 1250 euros anuais, enquanto alguns grandes agrários absentistas recebem centenas de milhares de euros.
Quarto – A PAC deve manter-se como política comum. Depois de anos a destruírem a nossa capacidade produtiva, recusamos as teorias dos que querem agora renacionalizar os custos da política agrícola, mas mantendo os constrangimentos do mercado comum, que atingem particularmente os países mais débeis. O que implica que sejam clarificadas urgentemente as perspectivas financeiras para a PAC e garantido um Orçamento suficiente para a sua implementação, com uma justa distribuição. (…)»