Entre a realidade e as palavras

Maurício Miguel

Image 9943

O leitor, assim como a maioria do povo português, deverá – não sem razão – estar farto de tanto tratado, pacto, estratégia ou outra qualquer receita com que a UE nos brinda e que a comunicação social dominante difunde de forma quase acrítica ou limitando-se a aventar loas em relação aos objectivos visados. E não será apenas pela confusão de nomes e siglas, ou porque alguns deles estejam associados a cidades bonitas, porque utilizam adjectivos cujo entendimento social lhes atribui elevada nota, ou porque se chega à conclusão de que entretanto uns anularam ou substituíram outros ou ainda pela legítima interrogação sobre a quem servirá tudo isto. Fundamento real há e muito, e é justa a conclusão a que chega mais e mais gente sobre as responsabilidades partilhadas pelos sucessivos governos e pela UE nos esquemas de roubo organizado e de aumento da exploração de quem trabalha para melhor servir os interesses do grande capital nacional e da UE. E não convém esquecer que este rumo tem intérpretes e opções de classe das forças políticas que têm monopolizado o poder na UE e em Portugal – social-democracia e direita. Pela minha parte poderia, uma vez mais, acrescentar nomes ao receituário infindável da UE – e muitos há que poderiam aqui ser denunciados. Optei por não o fazer. Permitam-me um apontamento de experiência pessoal sobre um seminário em que há cerca de dez anos participei e que se destinava a preparar quadros de empresas e autarquias para a elaboração de projectos a candidatar a «fundos comunitários». A «dica mais importante», afirmava um dos formadores, era pejar o documento de candidatura de ligações entre os objectivos do projecto e os objectivos do fundo da UE a que nos candidatávamos. Eram tempos em que se procurava difundir a ideia de que a adesão de Portugal à CEE/UE era o el dorado de fundos sem fim e que a entrada no euro nos colocava no pelotão da frente do desenvolvimento económico e social. Não demorou muito tempo a distanciarmo-nos do «pelotão da frente». Afinal, nesta corrida, utilizávamos uma bicicleta pasteleira e, por isso, quando estávamos apenas no início da contagem de montanha já éramos rebocados pelo carro-vassoura... Os fundos tinham sido afinal gastos em equipamento para o ciclista, mas a bicicleta pasteleira, essa, envelhecera e corre agora o risco de se destruir.

Com o devido respeito que me merece o referido veículo, Portugal não é uma bicicleta pasteleira. Esta metáfora da corrida de bicicletas tenta evidenciar o acentuar das diferenças de desenvolvimento económico e o rumo de destruição da capacidade produtiva nacional e de concentração da riqueza nas mãos dos grandes grupos económicos nacionais, com uma acelerada transferência de riqueza do nosso país para as grandes potências da UE. O aprofundamento da crise do capitalismo na UE abalou os alicerces da sua construção e abriu o espaço político para soluções que ameaçam não apenas a soberania e independência nacionais mas a própria existência de países como Portugal. As palavras são duras, assim o é a realidade com que nos confrontamos. As decisões que emergem das cimeiras, tratando-se de tratados, estratégias ou pactos, convergem num mesmo objectivo: acentuar a exploração, destruir soberanias e países. Ser-nos-á retirado o que restava da soberania das instituições nacionais (Assembleia da República e Governo) em relação à decisão sobre os instrumentos de política económica, orçamental e monetária e submetendo a Constituição da República aos ditames da UE, através da introdução de um limite ao défice. Tal dificultará ou impedirá mesmo a concretização de princípios consagrados na Lei Fundamental e agravará brutalmente todos os problemas do nosso país. Portugal ficará exposto às decisões das grandes potências da UE, particularmente da Alemanha, e à hegemonização do poder económico e político na UE. Não serão apenas as instituições de soberania nacional que serão esvaziadas de poderes centrais – elementos centrais da existência do próprio Estado; o povo português e a sua luta entrarão num patamar novo e mais difícil, em que o horizonte de tomada de poder se torna mais difuso, tendo que se desembaraçar não apenas da burguesia nacional mas igualmente dos mecanismos entretanto criados na UE, submetendo países como Portugal ao estatuto de colónia do grande capital da UE.



Mais artigos de: Europa

Greve geral a 29 em Espanha

Cerca de milhão e meio de pessoas manifestaram-se, no domingo, 11, em 60 cidades contra a reforma laboral imposta pelo governo de Rajoy, que os sindicatos qualificam de «injusta, ineficaz e inútil».

Direita derrotada

Na sequência do escândalo de corrupção que indignou a população eslovaca e destruiu a credibilidade dos partidos do centro-direita, os sociais-democratas do Smer, liderados por Robert Fico, não só venceram o sufrágio como obtiveram pela primeira vez a maioria absoluta.

Polícia britânica na via da privatização

No quadro do seu programa de redução das despesas dos ministérios, de 15 a 25 por cento, e de eliminação de 300 mil funcionários públicos, o governo conservador-liberal de David Cameron acaba de revelar um plano de privatização progressiva dos serviços...

Semana de greves por salários

Trabalhadores dos serviços públicos de vários estados federados alemães participaram nas chamadas greves de aviso, convocadas ao longo da semana passada pelo sindicato Ver.di. As greves parciais fizeram-se sentir na própria feira de tecnologia de Hanover, a capital da Baixa...

Agitação nas universidades checas

Dezenas de milhares de estudantes do Superior realizaram uma semana de protestos, que terminou no dia 2, contra o aumento das propinas e a privatização das universidades. A «semana de agitação» envolveu mais de 20 mil jovens em 12 cidades universitárias do país,...

Direitos de pensão das mulheres

A propósito das comemorações do dia Internacional da Mulher, realizou-se, dia 7, no Parlamento Europeu (PE), um debate organizado pelo GUE/NGL intitulado «Direitos de Pensão das Mulheres na Europa de hoje e do futuro». Neste debate participou a deputada do PCP no PE, Inês...