O branqueamento de Paco Franco
No dia imediato à vitória da equipa de Espanha no Mundial de futebol, o Canal da História transmitiu o primeiro de dois episódios acerca de Francisco Franco. Não era uma estreia, e é provável que a repetição em dia de festa espanhola tenha resultado de mera coincidência, a menos que se tenha tratado antes de uma certeira previsão. Não é isso que mais importa. O que importa, isso sim, é que o primeiro desse par de episódios constituiu uma esforçadíssima contribuição para uma tendencial canonização do Caudilho. Poder-se-á alegar que o segundo episódio, a transmitir no dia seguinte, poderia vir repor algum equilíbrio, dirão alguns que alguma isenção, no retrato final de Franco. Mas não se pode esquecer que muitos telespectadores poderão ter visto apenas o episódio inicial, e sobretudo que este já continha, quer por presença quer por omissão, factores tendentes a prejudicar uma justa avaliação final do biografado. Repetidos depoimentos de franquistas assumidos e dedicados, inverdades clamorosas (como a de que na construção do monumento erguido no sinistro Vale dos Caídos só trabalharam operários voluntários e remunerados), insistente tónica sobre os bons sentimentos de Franco como chefe de família (tal qual como Himmler, Goebbels e outros sujeitos tristemente célebres), resultaram num telediscurso quase hagiográfico capaz de suscitar indignação e repugnância. É certo que por vezes surgiam em rodapé legendas que poderiam vir desmentir a santidade do biografado. Mas a grande força do documentário estava nas palavras dos intervenientes, na cascata de louvores, nas escandalosas supressões de factos que o segundo episódio nunca poderia remediar inteiramente. É claro que é preciso tratar com equidade a História e as figuras históricas, mas uma suposta equivalência entre os mortos de Auschwitz e um imaginável «sentido do dever» dos oficias nazis que comandaram o campo não pode conduzir à diluição dos crimes e à compreensiva absolvição dos carrascos. Menos ainda se esta for tentada mediante a manipulação dos dados.
Um eventual contágio
O documentário tem o título português de «As Duas Faces de Franco», o que permitia supor que se trataria de comparar a imagem de um militar garboso e atulhado de «valores» com a de um chefe (caudilho!) ideologicamente alinhado pela direita mais extrema e responsável por abomináveis crimes não apenas entre 36 e 39, os anos da guerra civil, mas de facto bem para cá dessas datas. Mas o título original é bem mais generoso para com o criminoso na sua decerto não casual ambiguidade: «Franco, Cara y Cruz». De facto, como se sabe, Paco Franco era muito devoto de Deus, de um Deus que em muitos aspectos ele terá imaginado à sua própria imagem e semelhança: odiando os «rojos», implacável nos castigos e por isso criando na Terra infernos antecipatórios do que no além-túmulo esperaria os condenados. A generalidade das imagens recrutadas para o documentário foram-no para que provassem os seus altos méritos de militar e cristão, de verdadeiro cruzado como aliás ali foi designado. Por vezes, porém, as imagens denunciavam-no. O modo subserviente e untuoso (até me apetece dizer que escassamente viril) como cumprimentou Hitler no encontro de Hendaya pareceu-me menos próprio de um caudillo que de um subalterno com alguma vocação para capacho. De qualquer modo, o facto é que, deliberadamente ou não, o documentário veio inocular no espírito dos telespectadores muitos elementos abonatórios do ditador (acerca do qual um dos entrevistados teve o descaramento de sustentar que não, que Franco não foi um ditador!), e isto aconteceu em Espanha e com a colaboração da TVE. Ora, sabe-se que em Espanha não aconteceu uma ruptura com o fascismo franquista, que a «transição para a democracia» foi meiga e temerosa de melindrar os criminosos, que a toponímia e a estatuária pública mantêm numerosas homenagens a Franco e seus cúmplices, que o juiz Baltazar Garzon está a pagar duramente o seu projecto de condenar os crimes. Isto parece significar que em Espanha o fascismo se mantém confortável, generosamente consentido pelo establishment. E acontece que por vezes estas coisas pegam-se. Sabe-se que Portugal não é a Espanha, que por cá o epíteto de «fascista» ainda é considerado um insulto, mas o branqueamento de Franco e do franquismo pode dar ideias aos saudosos salazarismos fascistas, parafascistas, criptofascistas ou simplesmente filofascistas portugueses. Que aparecem pouco à luz do dia. Pero, que los hay, hay.