Os diferentes aspectos da crise do associativismo popular

A. Mello de Carvalho

A visão que a opinião pública possui do clube popular (e de muitos dos seus próprios dirigentes) constitui mais um factor de agravamento suplementar da situação em que estes vivem. Dirigente voluntário benévolo igual a incompetência, falta de rigor e incapacidade, enquanto o profissional é considerado como aquele que «sabe tudo». Significa isto que os clubes em que estes últimos não existem são mal geridos, gastadores e subsídio-dependentes. Nada é mais falso, mas a verdade é que esta é uma opinião dominante.

A «crise» desdobra-se, assim, por diferentes áreas, mas deve referir-se, acima de tudo, à situação da nossa sociedade no seu todo.

Antes de tudo, a crise é provocada pelas concepções que levam a tudo avaliar de acordo com a visão «monetarista», sem existir qualquer preocupação com os efeitos nos planos desportivos, social, educativo e cultural. Numa sociedade com estas características é evidente que aquilo que não é directamente rendível no plano financeiro é desvalorizado e marginalizado. A única solução é reconverter a instituição a esta «lógica» o que, para o clube popular, se torna inviável, justificando que se pense no seu desaparecimento.

Uma outra dimensão da crise diz respeito à relação que o Estado estabeleceu, no interior da própria crise, com o sector da vida associativa. Pela sua atitude, o Estado é um dos grandes causadores da crise: por um lado, ao descomprometer-se financeiramente, não fornece qualquer apoio escudando-se no argumento de que o clube é uma instituição privada. O que é verdade, mas uma verdade que não toma em consideração a dimensão social do clube e as funções de interesse público que desempenha no interior da comunidade, aliás, resolvendo por si mesmo aspectos da política social que o próprio Estado deveria desenvolver mas não o faz.

Por outro lado, deste descomprometimento financeiro resulta a necessidade de ter de procurar formas de garantir a sua sobrevivência, o que o torna presa fácil para os sponsors e outros mecenas, obrigando-o a «entrar» na lógica da comercialização, ou então a lutar para que os poderes públicos (em especial as autarquias locais) os apoiem financeiramente (donde o aparecimento da tal noção de subsídio-dependência que, quando analisada com suficiente cuidado, se revela completamente falsa).

Finalmente, em último lugar, o próprio Estado agrava a situação do clube com as cargas fiscais e a aplicação da legislação do trabalho, semelhantes às da gestão empresarial. Ao fazê-lo não toma em consideração a especificidade deste tipo de «empresa», de carácter não lucrativo e substancialmente diferente dos sectores comercial ou industrial, sempre projectadas para gerarem uma mais valia financeira para os seus donos.

Convém ainda fazer referência a outros dois factores geradores da crise. Em primeiro lugar é indispensável tomar em consideração os efeitos massivos do desemprego entre a população. A situação sofre ainda as consequências da generalização do trabalho precário, que exerce efeitos sobre os próprios profissionais do associativismo popular.

Um outro fenómeno que exerce uma influência no processo associativo refere-se ao incremento do individualismo, como forma de valorizar a singularidade do cidadão. Estamos perante uma questão complexa pois nem sempre o que se apregoa corresponde à realidade, mas convém dizer, para já, o seguinte: o individualismo como forma cultural de viver a existência e como prática de relacionamento está a ser promovido por aqueles, e só por eles, que possuem os meios de o tornar viável porque só eles podem dar-se a esse «luxo». Daqui resultam duas formas de individualismo, ambas prejudiciais para o associativismo: o de «concorrência», subordinada à ideologia do vencedor, e o de carácter «narcísico», de fecho sobre si mesmo, de rejeição do colectivo.

Esta última realidade traduz, em termos pessoais, a existência da «crise do político». A atitude do cidadão perante o dirigente político clássico é de descrédito, de uniformização e de desconfiança. O significado do aumento constante da abstenção que se tem verificado em certas sociedades, traduz, na realidade, a incapacidade fatalista em pensar que não é possível mudar algo na sociedade.

Esta atitude, que constituiu um autêntico «terramoto» na vida política de alguns países, assume um carácter que não deve ser confundido com o desinteresse do indivíduo pela vida social. Mas algo mudou em relação à atitude política clássica que atinge, em directo, a vida associativa.

Tudo isto, no fundo, constitui um risco sério de «corte» entre as instituições e as sua bases sociais. A crise do associativismo popular, não constituindo senão um dos aspectos específicos da crise global, vive também este risco. E, a não ser invertido, atingirá em cheio o dinamismo dos clubes de raiz popular.



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