Pobreza e combate à pobreza

Jorge Messias

Em Por­tugal e nos ou­tros países presos com ati­lhos aos cir­cuitos do ca­pi­ta­lismo ne­o­li­beral e à ti­rania da banca, das bolsas e do Va­ti­cano, as coisas vão de mal a pior para mi­lhões de po­bres. É o re­sul­tado ine­vi­tável dos sé­culos em que a ci­ência al­cançou su­cessos ja­mais so­nhados e no mundo velho os apa­re­lhos ca­pi­ta­listas e ecle­siás­ticos no poder con­se­guiram gerar o mi­lagre de se adap­tarem a su­ces­sivas mu­ta­ções dos es­ta­tutos po­lí­ticos, con­ser­vando para as che­fias a pa­lavra final. A Igreja, unida ao grande ca­pital, bap­tizou cristão o lucro, usou dos tec­no­cratas e das tec­no­lo­gias para er­guer um uni­verso em­pre­sa­rial es­tra­té­gico ex­clu­si­va­mente seu e pro­moveu a rede de re­la­ções ocultas que cons­ti­tuem o pulmão do grande ca­pital, ne­o­li­beral e glo­ba­li­zante.

Os re­sul­tados estão à vista. O au­mento in­con­tro­lado do de­sem­prego e das fa­lên­cias das pe­quenas em­presas ou a quebra da pro­du­ti­vi­dade e a su­bida do custo de vida ca­mi­nham a par. E a de­missão do papel so­cial do Es­tado, em pa­ra­lelo com as su­ces­sivas fu­sões entre os grandes grupos fi­nan­ceiros que ma­ni­pulam a crise para alar­garem o fosso entre po­bres e ricos, à custa dos sa­cri­fí­cios dos tra­ba­lha­dores. A apre­goada le­ga­li­dade de­mo­crá­tica é aber­ta­mente pros­ti­tuída e abu­sada pelos mais po­de­rosos; surge à margem do agra­va­mento da mi­séria uma es­tru­tura de classe ex­plo­ra­dora re­no­vada e res­surgem de um pas­sado pre­ma­tu­ra­mente es­que­cido as nu­vens ne­gras do Es­tado-po­lícia, dos des­ta­ca­mentos ar­mados e das di­versas formas de ane­xação de di­reitos con­quis­tados (li­mi­tado um hoje, outro amanhã). Des­membra-se a eco­nomia na­ci­onal, desde que cada pri­va­ti­zação possa pro­duzir lu­cros pri­vados ou fra­gi­lizar o Es­tado. Com a mesma marca de classe e de cons­trução da imagem do poder, ex­plodem por toda a parte os es­cân­dalos fi­nan­ceiros, po­lí­ticos e so­ciais que a Jus­tiça pa­ter­nal­mente deixa passar.

A po­breza cres­cente é um so­ma­tório destes fac­tores con­ver­gentes que se com­pre­endem nos qua­dros, sempre pre­sentes, da di­ta­dura do grande ca­pital. Há po­bres e há ricos, atraso e de­sen­vol­vi­mento, mas toda a hu­ma­ni­dade deve aceitar essas di­fe­renças como na­tu­rais. Assim, se em Por­tugal somos po­bres, po­bre­zi­nhos e vi­vemos das es­molas, im­porta que nos re­sig­nemos e acei­temos essa fa­ta­li­dade. Se­jamos su­ces­si­va­mente po­bres, pe­dintes e mi­se­rá­veis. É essa a von­tade de Deus e dos ban­queiros.

Este es­tado de coisas não se al­tera dei­tando re­mendos novos em botas ve­lhas.

É pre­ciso a rup­tura, é pre­ciso romper.

A dou­trina so­cial da Igreja e ou­tras coisas mais

Os res­pon­sá­veis da igreja por­tu­guesa com­pre­endem esta ló­gica muito bem. Mas os seus in­te­resses são deste mundo e si­tuam-se longe daqui. O Va­ti­cano e a CEE so­bre­põem-se nos seus mo­delos si­mé­tricos de di­recção e com­portar-se-ão até ao fim como plas­ti­cina pura nas mãos da «In­ter­na­ci­onal do Di­nheiro». Cabe ao Va­ti­cano fun­ci­onar como «ópio do povo» em ter­renos que con­finam em ca­deia com os da co­mu­ni­cação so­cial, te­le­no­velas, dos fu­te­bóis ou das lo­ta­rias. E é cam­peão da «ca­ri­dade uni­versal». As­pira à ad­mi­ração dos po­bres. «Pão e circo», já re­cla­mavam os es­cravos de Roma no apogeu do Im­pério.

Mas a Igreja é culta e in­ti­ma­mente co­e­rente con­sigo pró­pria. No pa­no­rama da ac­tual po­breza não usará das suas ca­pa­ci­dades para unir na luta contra a mi­séria (que diz com­bater) os po­bres e os con­de­nados à de­pen­dência e à es­cra­vidão. Pelo con­trário, nas suas aná­lises e na sua acção ca­ri­ta­tiva in­troduz novos con­ceitos (po­bres en­ver­go­nhados, novos po­bres, jo­vens po­bres, po­bres cró­nicos, po­breza mas­cu­lina e po­breza fe­mi­nina, etc.) que outra coisa não visam a não ser o en­fra­que­ci­mento da base po­pular de re­sis­tência dos po­bres e dos opri­midos. A Igreja é sábia e ex­pe­ri­ente nestas coisas. E não re­siste a au­mentar os lu­cros à custa da ca­ri­dade e os pro­veitos que as lo­ta­rias re­co­lhem.

Nou­tras áreas «es­tra­té­gicas» a Igreja também ca­minha com se­gu­rança. Por exemplo, nos sub-sec­tores vi­tais da Saúde ou da Se­gu­rança So­cial, zonas de há muito vi­sadas pelo pas­sa­dismo cró­nico das suas hi­e­rar­quias. Trata-se de repor a Igreja nas suas fun­ções ca­ri­ta­tivas me­di­e­vais, como se­nhora da so­bre­vi­vência dos po­bres.

Este plano tem vindo a ser de­sen­vol­vido ao longo do úl­timo de­cénio e conta já com uma ex­tensa malha de grandes, mé­dios e pe­quenos nú­cleos as­sis­ten­ciais (co­mu­ni­dades re­li­gi­osas, mi­se­ri­cór­dias, fun­da­ções e IPSS ), or­ga­ni­zadas em pi­râ­mide cujo pi­ná­culo é a Igreja. Tal como na CEE.

A meta final a atingir é clara: no Es­tado so­cial, cada ci­dadão comum tem di­reito à pro­tecção na saúde e na ve­lhice, através de ins­ti­tui­ções sus­ten­tá­veis e de toda a con­fi­ança. Mas os tempos são de mu­dança, como ainda re­cen­te­mente afirmou o padre Lino Maia, pre­si­dente da CNIS – Con­fe­de­ração Na­ci­onal das IPSS e su­per­visor má­ximo do pro­jecto so­cial ca­tó­lico: «O Es­tado por­tu­guês tornou-se de­ma­siado au­tista, fol­cló­rico e, con­se­quen­te­mente, ine­ficaz e pe­sado. São de­ma­si­ados os custos para o manter, bem como o seu ser­viço... o Es­tado pre­cisa de uma emi­nen­tís­sima e ur­gen­tís­sima re­forma que não se com­pa­deça com meras me­didas de sim­pli­fi­cação mas que se sus­tente em va­lores se­guros, como co­ragem, cre­di­bi­li­dade e, acima de tudo, hu­ma­nismo!».

Ora, a Igreja afirma-se «pe­rita em hu­ma­ni­dade». Por isso, o padre Maia pros­se­guiu as suas de­cla­ra­ções com a se­guinte ti­rada: «É ur­gente criar ideais e cons­truir ca­mi­nhos que re­co­lo­quem o Es­tado ao ser­viço de causas no­bres e in­te­resses co­muns e nos de­volvam a es­pe­rança. O Es­tado So­cial é ne­ces­sário e é pos­sível». E re­matou: «Se o Es­tado so­cial é posto em causa, para que serve o Es­tado?»

A moral da his­tória é fácil de con­cluir.



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