Saúde, um «negócio da China»…

Jorge Messias

Numa sociedade decadente, quase que cada caso é um caso de dissolução de práticas e de valores. E no entanto, o simples cidadão apenas - e nem sempre - conhece alguns tópicos de cada escândalo e nem sequer suspeita das dezenas, das centenas ou dos milhares de nódoas secundárias que ele encobre e que irão sobreviver ao esquecimento para darem frutos podres no futuro. Actualmente em Portugal, como em tempos passados, a fraude é um investimento seguro.

Concretizando: fraude, por exemplo, é o processo que visa desarticular e extinguir o Serviço Nacional de Saúde, uma das bandeiras da Revolução de Abril e das conquistas básicas do povo português. Se em épocas remotas a frágil assistência sanitária e social às populações foi monopólio da Igreja e da Coroa, as condições de vida evoluíram depois, exponencialmente e ao longo dos séculos, através de corajosas lutas sociais e de brilhantes progressos das ciências e das tecnologias. O conceito de Saúde diversificou-se, ligou-se a outras áreas vitais e ganhou um verdadeiro sentido político desenvolvido em torno de uma só alternativa: cuidados selectivos e privados, graduados segundo as disponibilidades financeiras de quem a eles queira recorrer; ou sistema desenvolvido pelo Estado, tornando universalmente acessíveis a todos os cuidados de saúde. Optou-se pelo meio termo da coabitação entre público e privado. A Saúde tornou-se então um bolo apetecível para os investidores e para as empresas. As massas populares continuam, no entanto, a reclamar os cuidados de saúde como seu direito natural ligado à noção de progresso e de justiça social. É este o actual estado de coisas numa área vital tão decisiva.

O País, a Igreja e a Nova Coroa

 Os quadros em que gira este conflito de interesses e de valores estão bem à vista. Todo o mundo capitalista mergulha em crise prolongada o que determina sempre, em situações semelhantes, um inevitável endurecimento das chefias : importa-lhes fazer abortar revoltas latentes, conduzir as reacções das elites, blindar o poder central e torná-lo insensível às pressões populares. Ter lideranças fortes e implacáveis. É este o sentido de todas as alterações recentes que se vão sentindo na Europa. Preparam-se as bases que permitam instalar uma só política económica, uma só estratégia monetária, um só sistema social, uma só Nova Ordem e… uma só Igreja Mundial. Todos os meios disponíveis devem convergir nesse sentido.

No sector da Saúde e da Segurança Social , a concentração das forças que assediam o aparelho democrático é impressionante. Trata-se de uma área que interessa a todo o mundo financeiro e a toda a economia capitalista. As exigências básicas dos serviços de saúde implicam, na actual situação, a movimentação de grandes massas financeiras, negócios com as seguradoras, com as bolsas imobiliárias, com os gigantescos grupos da indústria farmacêutica, com a construção civil, com a electrónica, com a informática, etc., etc. Por outro lado, ligam-se ao universo do ensino, do emprego e da especialização tecnológica. A acção social como direito humano é absorvida pelo grande mundo dos negócios.

A Igreja Católica, espelhada no Vaticano, desempenha neste complexo universo de encontros e desencontros um papel central que resulta quer da sua presença histórica quer das suas alianças financeiras, políticas e comerciais.

Culturalmente, pela sua tradição na História do Ocidente, é responsável pela introdução de certos conceitos-mestres mas ambíguos (como caridade v. deveres sociais do Estado, solidariedade v. luta contra a pobreza ou Estado laico v. Estado confessional). Socialmente, prepara-se para se substituir ao Estado nas áreas assistenciais. Para alcançar essas metas dispõe das concordatas no plano legal e da Sociedade Civil (Misericórdias e IPSS) no plano instrumental. Financeiramente, dispõe de tão gigantescas verbas que basta ver como os mais poderosos grupos bancários ou os chamados «paraísos fiscais» giram na órbita do Vaticano. A Santa Sé é parceiro insubstituível do capitalismo mundial. A constatação não nos deve admirar porque sempre assim foi. Desde os saques da Reconquista Cristã.

De espantar - isso sim! - é o actual comportamento de grande parte dos católicos e das suas organizações intermédias. A Igreja institucional recebe rios de dinheiro do Estado e do Mecenato para «combater a pobreza, acudir ao desemprego e à miséria, salvar as famílias, instalar novos hospitais e creches ou modernizar os lares para idosos». E que faz ela a tanto dinheiro que recebe? Como contribui a Igreja Católica para a instalação, nas camadas mais jovens, de uma mentalidade aberta mas reivindicativa?

A questão que deveria ser hoje saudável colocar, nesta importante área nacional, parte da verificação de que, durante o período fascista, surgiram crentes, sacerdotes, leigos e organizações católicas, que assumiram posições de risco, corajosas e frontais e enfrentaram, quando necessário, as suas próprias hierarquias.

Por onde andam agora os seus continuadores? Onde param os combatentes católicos livres e sedentos de justiça?



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