Os dois Bentos

Correia da Fonseca

 

 

Não é preciso que o telespectador seja muito atento e arguto para que se aperceba de que os telenoticiários em geral, ainda que porventura uns mais que outros, são aplicadamente parasitários da imprensa escrita. É de todos os dias que o apresentador ou apresentadora de um serviço noticioso nos informe de que, «segundo o jornal» ou «o semanário» tal, aconteceu isto e aquilo ou o senhor doutor Fulano afirmou aquel outro. Assim a TV economiza talvez o esforço de mandar um jornalista em busca da notícia, reservando-o porventura para melhores destinos, e por outro lado pratica de facto uma modalidade sintética de alguma concorrência menos leal, pois se o cidadão sabe pelo televisor o que de mais relevante os jornais publicam talvez se dispense da despesa de o comprar. Saltemos, porém, sobre esta questão, para explicar por que surgiu ela nestas linhas. É que um dia destes, mais exactamente no passado domingo, uma daquelas informações que no ecrã passam em rodapé enquanto imagens e sons se dedicam talvez a futilidades informava-nos do que havia sido talvez o essencial de uma longa entrevista publicada no DN desse dia. O entrevistado era o dr. Vítor Bento, economista, ex-Director-Geral do Tesouro, ex-presidente do Instituto de Gestão e de Crédito Público, actual presidente da Sociedade Interbancária de Serviços (SIBS), conselheiro de Estado por obra e graça do senhor Presidente Cavaco Silva. A tal informaçãozinha em rodapé contava-nos que Vítor Bento considera insustentável o Estado Social em que vivemos. Isto é, suponho eu baseando-me no texto integral da entrevista: considera insustentável que vivamos com um Serviço Nacional de Saúde «tendencialmente gratuito», subsídios de desemprego generosos, pródigos rendimentos de inserção e, talvez sobretudo, salários altíssimos que é preciso baixar urgentemente quer na função pública quer no sector privado.


Afinidade, talvez


Mesmo na brevíssima síntese fornecida pela televisão, a opinião de Vítor Bento não surpreenderá ninguém, não surpreenderá sobretudo quem for telespectador minimamente atento: a TV portuguesa está cheia deles, dos que acham que os portugueses, decerto todos eles porque não é de uso fazer distinções entre uns e outros, vivem acima das suas possibilidades, «como uns lordes», como diria a minha avó que ainda era do tempo da hegemonia britânica no mundo. De onde a compreensível chuva de conselhos e outras pressões no sentido de cortar a essa populaça os abundantes privilégios que conseguiu obter na onda desencadeada pelo 25 de Abril: com toda essa gente a ganhar como ganha, a gastar como gasta, a usufruir como usufrui, o País não é viável ou, pelo menos, não é viável o País por eles desejado. Pelo que é urgente cortar na despesa. Do Estado: nos subsídios, nos cuidados públicos de Saúde, nesses luxos. E agilizar o sector privado: baixar salários, facilitar despedimentos, alongar horários. Em verdade, se os segmentos mais distintos da sociedade portuguesa tivessem gostos mais plebeus, que obviamente não os têm, desejariam substituir o Hino Nacional de Keil/Mendonça pelo «Ó Tempo Volta Para Trás!» em voga nos últimos anos do tempo de saudosa memória. Assim, a sentença de Vítor Bento que a televisão divulgou em súmula mais não é que uma entre muitas outras, todas elas iguais entre si, versões doutas e envernizadas do que seria uma outra fórmula de sabor mais popular: os pobres que paguem a crise, pois é também para isso que servem! Porém, acontece que falar do dr. Bento e de pobres convoca para a nossa memória recente a visita de um outro Bento, cuja presença entre nós constituiu um enorme acontecimento mediático. É que esse Bento, o décimo sexto a sentar-se na chamada Cadeira de São Pedro onde, para seu mal, o Pedro inicial nunca chegou a sentar-se, falou enquanto esteve entre nós, falou decerto sempre muito bem pois sempre o terá feito sob o efeito de especialíssima inspiração, mas não recordo que alguma vez o seu discurso tenha referido os pobres deste nosso País que, como se sabe, são muitos e bons. Assim se nota uma significativa afinidade entre os pensamentos dos dois Bentos, ainda que a julgar apenas pelo pouco que deles se soube nos dias mais recentes: um e outro se dispensam de recordar que os pobres existem, que sofrem, que existência e sofrimento têm causas e fautores, que talvez seja preciso e até prudente tratar disso. Perante o que talvez haja, entre outras, uma coisa a desejar: que um dia destes o Céu os ilumine.



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