A arraia-miúda e a grande estética

Manuel Augusto Araújo

De­zoito tra­ba­lha­dores da Fun­dação de Ser­ralves que exercem ta­refas es­sen­ciais ao seu bom fun­ci­o­na­mento, re­la­ci­o­nadas com os ser­viços de re­cepção, aten­di­mento, ben­ga­leiro e te­le­fo­nista, foram in­for­mados pela di­rec­tora-geral que os seus «con­tratos de pres­tação de ser­viços» ces­sa­riam a partir do dia 12 de Abril. Numa en­ti­dade em que o or­ça­mento é mai­o­ri­tária e lar­ga­mente su­por­tado por trans­fe­rên­cias de verbas do Or­ça­mento do Es­tado, via Mi­nis­tério da Cul­tura, a que se somam as da Câ­mara Mu­ni­cipal do Porto, é cho­cante que se vi­olem os di­reitos dos tra­ba­lha­dores de forma tão des­pu­do­rada. Al­guns estão na Fun­dação de Ser­ralves há de­zas­sete anos a re­cibo verde, em clara vi­o­lação das leis do Es­tado, o mesmo que a sus­tenta e su­porta com di­nheiro de todos nós, con­tri­buintes, com a par­ti­cu­la­ri­dade, nada des­pi­ci­enda, de Ser­ralves re­ceber bas­tante mais di­nheiro que os Mu­seus Na­ci­o­nais, Co­ches, Arte An­tiga e Ar­que­o­logia, sem se per­ceber quais os cri­té­rios para essa dis­cre­pância, muito ocul­tada para se lou­va­mi­nhar as vir­tudes das par­ce­rias pú­blico-pri­vadas, em que o maior con­tri­buinte ab­dica da pre­si­dência e da mai­oria na ad­mi­nis­tração. Mis­té­rios pú­blicos para ali­mentar fic­ções pri­vadas.

No caso que se re­lata, a fazer fé nos jor­nais, os poucos que a ele se re­fe­riram, o ci­nismo ul­tra­passa o acei­tável. A di­rec­tora de Re­cursos Hu­manos clas­si­fica esse con­junto de fun­ci­o­ná­rios de «bolsa de co­la­bo­ra­dores» porque «são eles que or­ga­nizam as es­calas de ser­viço», como se al­guém, a co­meçar pela pró­pria, acre­di­tasse que fosse pos­sível fazer isso à re­velia do fun­ci­o­na­mento do Museu de Ser­ralves, sem o aval de um téc­nico su­pe­rior da Fun­dação ou como se eles tra­ba­lhassem em Ser­ralves car­re­gando todos os dias de casa os meios téc­nicos ne­ces­sá­rios para exercer as suas fun­ções, não cum­prissem ho­rá­rios ne­ces­sa­ri­a­mente con­so­nantes com as exi­gên­cias e pri­o­ri­dades do museu e não ti­vessem mesmo que jus­ti­ficar as faltas ao tra­balho. Acres­centa que não se ofe­receu ne­nhuma in­dem­ni­zação porque «se o fi­zés­semos seria ad­mitir que ti­nham con­trato de tra­balho». Com esses dri­bles da re­a­li­dade, a dou­tora da mula ruça deve estar cheia de em­páfia a pensar que somos todos parvos; porque se acre­dita mesmo no que diz o caso mesmo é muito mais grave e me­rece cui­dados es­pe­ci­a­li­zados. A com­pletar esse quadro si­nistro re­vela que a Di­recção Geral propôs que os tra­ba­lha­dores cri­assem uma em­presa, pelo que de­ve­riam pro­curar ori­en­ta­ções na IN Ser­ralves, a in­cu­ba­dora das in­dús­trias cri­a­tivas da Fun­dação. Fi­cámos assim a saber para que serve a in­cu­ba­dora e a lar­gueza de cri­té­rios que usa para aceitar pro­jectos e in­fla­ci­onar as es­ta­tís­ticas. Apesar dos tempos que se vivem serem pro­pí­cios a esses tor­ci­colos das evi­dên­cias, o caso con­tinua a não deixar de ser sur­pre­en­dente numa Fun­dação que tem dois ad­mi­nis­tra­dores no­me­ados pelo Es­tado, Rui Gui­ma­rães e a de­pu­tada eu­ro­peia Elisa Fer­reira, que acom­pa­nham dois ex-mi­nis­tros: Braga da Cruz e Luís Campos e Cunha, o tal que anda sempre a de­fender as vir­tudes das pri­va­ti­za­ções e do menos Es­tado e que aqui é no­meado pelos pri­vados para rapar a ga­mela do Es­tado. Para essa gente tudo deve estar nos con­formes. Essas coisas do de­sem­prego da ar­raia-miúda e a prá­tica de ile­ga­li­dades são mi­nu­dên­cias quando todos os pa­tacos que se poupam são ben­vindos e con­tri­buem pa­ra­gastar à tripa forra num acervo so­frível, como o que fi­nal­mente foi dado ver, ou numa pro­gra­mação de ex­po­si­ções dis­cu­tível onde este ano se irão gastar quase 4 mi­lhões de euros, desde que a opi­nião cor­po­ra­tiva não abra bre­chas está tudo azul. So­bre­tudo agora que es­peram que o Es­tado, essa vaca sempre pronta a ser mun­gida por esta gente en­ca­der­nada e ser­ven­tuária do pen­sa­mento do­mi­nante eco­nó­mico, es­té­tico, so­cial e po­lí­tico, fi­nancie o pólo Ser­ralves 21, em Ma­to­si­nhos, en­tregue à dupla de ar­qui­tectos Ka­zuyo Se­jima/​Ruye Nishi­zama, cum­prindo os cri­té­rios da ar­qui­tec­tura star-system para que a ad­mi­nis­tração de tão ex­celsa Fun­dação se sinta lam­bu­zada de kol­tura e exiba essas nó­doas! É a me­di­o­cri­dade em marcha! Sinal dos tempos é não se ouvir em Ser­ralves ne­nhuma voz contra a vi­o­lação da lei nem so­li­dária com esses tra­ba­lha­dores. Pro­va­vel­mente porque uns se calam, re­ce­ando o fu­turo o que não abona a favor da de­mo­cracia in­terna, ou­tros lavam as mãos nas águas lus­trais es­té­ticas não se mis­tu­rando com cousas me­nores e ou­tros porque são os ale­gres exe­cu­tantes das ca­balas do fle­xi­em­prego, uma prá­tica velha e relha que há sé­culos lixa os tra­ba­lha­dores em nome da mo­der­ni­dade.



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