«Tolerâncias»

Henrique Custódio

Esta semana, o primeiro-ministro José Sócrates decidiu exibir duas medidas à sua medida.

Primeiro, determinou «tolerância de ponto» na Função Pública para os dias 11 (concelho de Lisboa), 13 (em todo o País) e 14 (concelho do Porto) em honra do Papa Bento XVI, que está de visita a Portugal.

Depois – e em plena «vigília papal» por si decretada – admitiu aumentos no IVA e cortes no subsídio de Natal a aplicar a 4,2 milhões de trabalhadores e mais de 2,4 milhões de pensionistas, tudo, segundo ele, para «baixar o défice» em mil milhões de euros já este ano, por ordem da União Europeia e da Alemanha, que nela manda.

Em relação à «tolerância de ponto» - eufemismo manhoso que finge transformar folgas concedidas oficialmente em «opções do trabalhador» -, a vantagem descortinável será a dos que aproveitarem a dita numas mini-férias para que, provavelmente, não terão dinheiro.

Entretanto, a decisão de Sócrates em decretar tantas e tão alargadas folgas nacionais «considerando a importância que reveste a visita a Portugal de Sua Santidade o Papa Bento XVI» (sic) faz-nos desconfiar que o «Zézito da Covilhã» (como carinhosamente o semanário Sol chamava a Sócrates, numa hagiografia de 20 páginas publicada no início do seu primeiro mandato) já se julga uma espécie de Ayatollah do Queijo da Serra, com o direito de pôr uma República laica a ladainhar ao Papa durante quase uma semana.

Tão esgargalada devoção católica do primeiro-ministro não mereceria atenção de maior se não tivesse sido enxertada, pelo próprio, com um venenoso e letal rebento: o anúncio de novo e intolerável esbulho aos trabalhadores e reformados através do aumento do IVA e do corte no subsídio de Natal, tudo sob o pretexto da diminuição imediata do défice – pretende-se um corte de mil milhões de euros na despesa já este ano e de três mil milhões até 2011.

Perante tão brutal ofensiva contra quem vive do seu trabalho (ou da sua reforma) e a invocação, pelo próprio Governo, da «urgência» e da «indispensabilidade» destes cortes, pergunta-se que sentido faz esta medida do primeiro-ministro a decidir a paralização do País e das duas principais Áreas Metropolitanas ao longo de três dias.

Se Portugal está assim tão necessitado de «poupar», como pode o primeiro-ministro atirar à rua esta enxurrada de milhões, exactamente os que se perdem – ou deixam de se produzir - nas «tolerâncias de ponto»?

Se essa «urgência de poupar» justifica este novo e selvático assalto do Governo aos salários, pensões e nível de vida dos portugueses, como é que não impôs ao primeiro-ministro a «indispensabilidade» de não desperdiçar fortunas do erário público com «tolerâncias de ponto» que, se não são inexplicáveis, serão pelo menos claramente dispensáveis?

Finalmente, anote-se a rasteirice do primeiro-ministro a publicitar medidas político-económicas gravosas a coberto da visita papal que, entretanto, lisonjeara à custa do Orçamento.

É um retrato a corpo inteiro de José Sócrates: um homem que esbanja balúrdios do erário público a promover uma festa, para nela anunciar aumentos de impostos e cortes salariais em nome da «austeridade».



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