Falsificações

Jorge Cadima

A revisão da história da II Guerra começou ainda antes da guerra acabar

Às vezes, uma notícia é como uma fotografia – vale mais do que milhares de palavras. Segundo a Radio 4 da BBC. «Documentos descobertos pela BBC revelam que os comandantes britânicos e americanos garantiram que a libertação de Paris, em 25 de Agosto de 1944, aparecesse como uma vitória “apenas de brancos”[...]O programa Document da BBC viu provas que os soldados negros das colónias [francesas] – que constituiam cerca de dois terços das forças da França Livre – foram deliberadamente retirados da unidade que conduziu o avanço aliado para o interior da capital francesa». E ainda: «o dirigente das forças da França Livre, Charles de Gaulle, tornou claro que desejava que os seus franceses conduzissem a libertação de Paris. O Alto Comando Aliado [anglo-americano] concordou, mas sob uma condição: a divisão de De Gaulle não deveria incluir quaisquer soldados negros [...] No fim, quase todos ficaram felizes. De Gaulle obteve o seu desejo de ver uma divisão francesa conduzir a libertação de Paris, embora a escassez de tropas brancas significasse que muitos dos seus homens eram na realidade espanhóis. [...] Mas para os Tirailleurs senegaleses, houve poucos motivos para celebração. [...] Após a libertação da capital francesa, muitos foram simplesmente despidos dos seus uniformes e enviados para casa. Para agravar as coisas, em 1959 as suas pensões foram congeladas» (BBC, 7.4.09).

A notícia ilustra muita coisa: como se falsifica a História com encenações bem propagandeadas que glorificam generais sem tropas; como a Libertação da ocupação nazi não representou a libertação dos povos colonizados pelo liberal-democrata e ocidental-civilizado império francês; como os Aliados anglo-americanos (também cúmplices na colonização de boa parte da Humanidade) encaram os povos: carne para canhão, que serve para morrer nas guerras que afirmam o seu poder, mas não para participar nas vitórias.

Sem qualquer desprimor pelo valioso trabalho dos jornalistas da Radio 4, importa também salientar o que a notícia não diz. Quando as tropas aliadas entraram em Paris em 25 de Agosto, encontraram uma cidade já praticamente libertada pela Resistência francesa e o levantamento popular, com destaque para os Francs-Tireurs et Partisans (FTP), guerrilha em que os comunistas desempenharam o papel de vanguarda. Realidade reflectida na cerimónia de rendição do comandante das tropas alemães em Paris, von Choltitz, em que participa o comunista e comandante dos FTP, Coronel Henri Tanguy (Rol). Milhares de «franceses brancos» tiveram um papel decisivo na libertação da França. Mas eram em grande medida comunistas. Eram povo. O que escasseava eram «franceses brancos» da burguesia. Que, fiel ao seu grito de «antes Hitler que a Frente Popular» ou «antes a Prússia do que a Comuna», havia em boa medida escolhido o campo do colaboracionismo, do Marechal Pétain, da capitulação ou da passividade. A dominação de classe estava em primeiro lugar. Não era uma situação única entre as burguesias europeias. Pelo contrário. Mesmo sem falar na Alemanha e Itália, na Peninsula Ibérica, nos Balcãs ou na Escandinávia, a maioria da burguesia inglesa estava com o Pacto de Munique e tinha um fraquinho por Hitler, que havia “metido na ordem” os comunistas e os sindicatos. Churchill apenas chegou ao poder quando se tornou claro que Hitler não iria necessariamente respeitar o Império Britânico. E por toda a parte, de Estalinegrado a Paris, os comunistas desempenharam papel decisivo na derrota do nazi-fascismo.

A revisão da história da II Guerra começou ainda antes da guerra acabar. Hoje, o revisionismo e a mais despudorada falsificação histórica alastram - veja-se a vergonhosa resolução do Parlamento Europeu de 2 de Abril. Os herdeiros de Vichy e de Munique, os fascistas que de novo assomam ao poder em Itália ou no leste europeu, e outros - que deveriam ter vergonha - aliam-se para falsificar a História. Querem crucificar e perseguir os comunistas. Mas o que os move é sobretudo o medo. O medo de que os povos se insurjam contra o capitalismo e a sua dominação de classe - geradora de guerra, crise, miséria e fascismo - tornando-se de novo actores da História e construtores do seu futuro colectivo.


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