A trama do gás

Luís Carapinha

A Leste o descontentamento social alastra rapidamente

A situação criada com a reincidente «guerra» do gás entre a Rússia e a Ucrânia adquiriu neste início de 2009 uma dimensão inédita.
Nunca em 30 anos o gás natural russo deixara de circular nas tubagens da rede de gasodutos para a Europa legada pela URSS, privando de abastecimento países do Leste europeu e dos Balcãs, como aconteceu durante as cerca de duas semanas de Janeiro em que os fornecimentos para e através da Ucrânia foram completamente interrompidos.
Ao contrário da anterior mini-guerra de 2006, o presente braço de ferro afectou directamente vários países, levando à paragem de inúmeras fábricas e a restrições drásticas do consumo doméstico.
A Leste o descontentamento social alastra rapidamente, fruto do aprofundamento da crise económica mundial, e a credibilidade ideológica do sistema soma pontos negativos. Afinal, e no que ao gás diz respeito, a lógica tout court capitalista logrou a pequena proeza de transformar a «geografia» num obstáculo, erguendo inusitadas barreiras nas fronteiras entre estados...

O acordo obtido na madrugada de domingo entre os chefes de Governo de Moscovo e Kiev, Putin e Timochenko, que permitiu, para já, retomar os fornecimentos normais de gás russo afigurava-se, assim, inevitável.
No entanto, a disputa comercial entre entre os dois países vizinhos em torno dos preços do fornecimento e trânsito do gás russo constitui só a ponta do iceberg. As razões de fundo que estiveram na origem de mais esta erupção permanecem.
Na verdade, sob os efeitos do desenrolar da crise económica do capitalismo e, particularmente, desde a guerra no Cáucaso do último Verão, a escalada de tensões em todo o antigo perímetro soviético não parou de se agravar, com a agenda expansionista do imperialismo e as aspirações de potência do regime capitalista russo a ditarem a sua lei.

Tudo indica que o bloqueio ucraniano à passagem do gás foi meticulosamente preparado – Kiev acumulou mesmo reservas de gás para seis meses – e decidido a partir de Washington, e gozou da complacência da UE. Com a «revolução laranja» em coma profundo e a economia ucraniana perto do estado calamitoso, os EUA culpabilizaram o Kremlin, colocando a tónica na falta de fiabilidade da Rússia como fornecedor, o que aliás constituiu o ponto de enfoque dos média (e um contributo «útil» para o caldo de cultura dos planos da NATO de vir a actuar como garante da «segurança energética»). Na «guerra surda» pelo controlo dos recursos e corredores energéticos no ex-espaço soviético, os EUA e a UE são aliás os grandes impulsionadores do projecto do gasoduto «alternativo» Nabucco para ligar a Ásia Central à Europa Ocidental via Mar Cáspio. Ao invés, o cerco militar à Rússia aperta-se. Para o pano de fundo da trama do gás, convém não esquecer ainda que os EUA assinaram em Dezembro um acordo de parceria estratégica com Kiev, que inclui o sector energético e reafirma a declaração da NATO de integrar a Ucrânia na Aliança, precisamente poucos dias antes de, em Moscovo, ser formalizada a constituição do Fórum dos Países Exportadores de Gás, que integra alguns dos maiores produtores, entre os quais a Rússia, Irão, Líbia, Argélia, Venezuela e Bolívia.

Putin acertou ao mencionar «o colapso político» na Ucrânia e o «alto nível de corrupção das suas estruturas do poder» (RIA-Novosti, 08.01.09).
Porém, a prioridade da agenda energética como mola impulsionadora das pretensões hegemónicas do capitalismo russo (que o diga a Bielorrússia) está longe de garantir a superação das debilidades estruturais que ameaçam o futuro da Rússia pós-soviética.
Num cenário de crise capitalista mundialmente instalado, 2009 perspectiva-se um ano de duras provações, exigindo a mobilização dos trabalhadores e povos.


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