Democracia e dinheiro

Filipe Diniz
Sócrates deu uma entrevista. Entre as coisas extraordinárias que disse e que merecem ser retidas está a afirmação de que «a democracia custa dinheiro», afirmação que adquire tanto maior significado quanto vivemos uma grave crise financeira global, cujas repercussões sociais, económicas e políticas ainda vão no adro.
Podemos portanto concluir que se não houver dinheiro não haverá democracia.
Não é disso que Sócrates está a falar, mas a memória histórica regista que entre as mais dramáticas consequências do crash bolsista de 1929 e da crise de 1929/30 (cuja profundidade provavelmente não será maior do que a da crise actual) se contam o ascenso do nazismo e do fascismo e a 2.ª Guerra Mundial.
Sócrates está a falar de outra coisa: da democracia tal como a concebe e entende, a democracia que não apenas custa dinheiro, mas em que o dinheiro é o meio fundamental de determinação dos resultados.
Da democracia da fascizante lei do financiamento dos partidos políticos.
Da democracia à americana, de que a actual campanha presidencial é um elucidativo espelho. Como agora a hipocrisia moralista está em alta, a candidata Sarah Palin tem sido censurada, não tanto pelo seu reaccionarismo primário, mas por ter gasto 150 mil dólares em roupas e sapatos. A candidatura republicana veio logo explicar que esses sapatos e roupas serão doados a instituições de caridade. Deste modo, e por exemplo, algumas de entre as 2,5 milhões de famílias americanas que já perderam ou irão perder em breve as casas em que habitavam poderão entrar nas tendas ou nos automóveis em que agora vivem envergando elegantes sapatos de pele de crocodilo.
150 mil dólares é uma gota de água nos 360 milhões que McCain já angariou, e uma gota ainda menor face aos cerca de 600 milhões de Obama. Mas é quase tanto como a candidata pacifista Cynthia McKinney recolheu até agora.
Não há igualdade democrática num quadro à partida determinado pela escolha que o grande capital faça em relação às candidaturas em presença.
É assim nos EUA e é assim na cabeça de Sócrates.
Mas nenhum dinheiro poderá alguma vez comprar o direito dos trabalhadores e dos povos a decidirem o seu próprio futuro.


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