Bonaparte

Jorge Cordeiro
A operação de propaganda que a entrevista de José Sócrates constituiu, conduzida por um importante grupo da comunicação social, não revelou, mal grado a sua generosa extensão, nada trouxe de diferente do que se conhece e se sabe: o mundo obsessivo de certezas que o cercam e a obstinada fixação nas mesmas políticas e orientações que que daí decorre. Ainda que para as manter tenha que negar hoje o que ontem afirmara ou assumir agora o que antes recusara. Mesmo que do exercício resulte o ridículo do contraste entre as palavras e os actos ou a eminente exposição a um categórico desmentido por parte do mundo real em que vive. Deixando de lado o truque para aparecer como campeão do aumento do salário mínimo nacional – ignorando o facto de os seus valores de actualização resultarem de um acordo imposto pela vigorosa luta de massas num quadro em que até ao último momento resistiu com o argumento do seu irrealismo – retenhamos o que disse sobre a crise internacional.
Por mais que se esforce, Sócrates não só não pode iludir o seu continuado apego às virtudes do mercado que durante anos glorificou e a sua política activa de apoio ao capital financeiro, como não iludirá que essas opções e apoios se mantem inscritos na sua acção e objectivos. A garantia dada à banca de 20 mil milhões de euros, a pretexto das ajudas às famílias e às empresas, sem que tenha imposto quaisquer condições em matéria de fixação de taxas de juro a cobrar aos empréstimos ou de definição dos pequenos e médios empresários como os destinatários a privilegiar, são prova de que, com esta medida, o Governo teve em vista, não responder às vítimas da crise mas sim favorecer alguns dos seus responsáveis.
E se Sócrates vem agora afirmar, para se distanciar das suas próprias opções e orientações, que esta crise é «o Waterloo daqueles que sempre acharam que o Estado não devia intervir» deve então, em coerencia com o raciocínio, proclamar-se o Bonaparte da política nacional.


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