A jóia 46664

Anabela Fino
Nelson Mandela, o dirigente histórico do ANC que há dias completou 90 anos, é hoje universalmente considerado como uma das mais proeminentes figuras do século XX. Prémio Nobel da Paz em 1993 juntamente com Frederik de Klerk – o último presidente branco sul-africano – pelos contributos de ambos para a liquidação do apartheid, Mandela é um símbolo vivo da luta dos povos pela dignidade humana contra a barbárie racista e contra a opressão e exploração capitalista.
O homem que em 1994 se tornou o primeiro presidente negro da África do Sul, quando naquela grande potência do continente africano finalmente foi reconhecido o elementar princípio de «um homem, um voto» – há menos de duas décadas, portanto – , viu o seu aniversário celebrado em todo o mundo como um acontecimento privilegiado para a reafirmação dos supremos valores da paz e da democracia.
Da sinceridade de tais manifestações – ou da falta dela – fala a história dos povos, que não se apaga com a ligeireza com que os Estados Unidos apagaram o nome de Mandela da sua lista de «terroristas». É de admitir que a permanência de Mandela na abjecta lista até pouco tempo antes do seu 90.º aniversário se deva a um erro de casting, a burocrática falha, a lamentável desatenção. Mas a questão não é essa. A questão, que os serventuários do imperialismo norte-americano aquém e além fronteiras hoje tanto se empenham em escamotear, é o facto de Mandela ter constado nela.
O homem que agora todos aclamam, desdobrando-se em louvores, não foi «apenas» durante 27 anos o preso número 46664 do regime do apartheid da África do Sul. Esse homem foi também durante décadas um perigoso «terrorista» segundo os padrões dos EUA, porque teve a coragem de lutar e incentivar à luta pela liberdade e pela democracia.
Ora sucede que os EUA têm uma lista com mais de um milhão de terroristas ou suspeitos de terrorismo, segundo revelou a 14 de Julho a American Civil Liberties Union (ACLU), uma organização americana de defesa das liberdades civis. A denúncia surgiu após a ACLU ter acedido a um relatório do departamento de justiça relativo ao «Terrorist Screening Center» do FBI, que em Abril de 2007 tinha mais de 700 000 nomes no seu banco de dados, com uma entrada mensal de 20 000 novos suspeitos.
A propósito, diga-se que a ACLU (www.aclu.org/watchlist) considera a lista «um óptimo exemplo dos erros cometidos pelo governo no combate ao terrorismo», pois é «injusta, está fora de controlo, desperdiça recursos, ameaça os direitos de pessoas inocentes, e é um verdadeiro obstáculo à vida de milhões de pessoas que precisam de se deslocar» nos EUA.
Mandela passou de vilão a herói. E são tais as volta que o mundo dá que o número 46664 ilustra hoje uma pulseira de luxo lançada pela marca Montblac, que assim diz querer homenagear Mandela. Os lucros da venda da jóia – disponível em ouro e prata – reverterão na totalidade, assegura a marca, para a Fundação Mandela, que ajuda seropositivos em África.
Mesmo sabendo que nem todos os suspeitos de «terrorismo» são mandelas e que muitos permanecerão para sempre no anonimato, ocorre perguntar quantas jóias seria preciso lançar lançadas no mercado para «reabilitar» os injustiçados deste mundo...


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