Inocentes…

Agostinho Lopes (Membro da Comissão Política do PCP)
Tão inocentes que eles são! A amnésia política, que a generalidade dos órgãos de comunicação social exibe, e não por doença congénita dos seus profissionais, permite que os responsáveis políticos e partidários por gritantes e actuais problemas da sociedade portuguesa, «renovem» os seus discursos, lavados de pecados. E pior, que (re)apresentem como solução, opções e políticas que estão na origem dos problemas.
A pia baptismal feita do correr do tempo, da cura de oposição, ou da mudança de líder e restante pessoal político, e às vezes nem isso é preciso, iliba-os, inocenta-os, das suas responsabilidades, mesmo sem qualquer acto de contrição ou sinal de arrependimento, por exemplo, a assumpção do erro! Em tempo de crise então, a desfaçatez de alguns raia a farsa, a pura fraude, com a santa bênção da água mediática do esquecimento. Os exemplos são demasiados, pois correspondem às consequências das políticas de direita que duram há 33 anos.
Faltam médicos no Serviço Nacional de Saúde. As gerações que o continuam a «aguentar» caminham a grande velocidade para a reforma, ou seja a perspectiva de um brutal agravamento do problema. Mas ninguém é responsável pelas políticas que instituíram o numerus clausus impedindo milhares de jovens portugueses de tirarem o curso de medicina que desejavam. Recorde-se que os médicos e médicas que hoje garantem o SNS e a sua qualidade (e muito do sector privado) foram estudantes que concluíram o então curso geral dos liceus com 10, 11, 12 e etc. valores! Não há responsáveis pela não criação atempada de novas escolas de saúde. E há até, alguns dos que tiveram responsabilidades governativas, a falar de desajustamentos entre formações e mercado de trabalho! Não há responsáveis pela inflação dos serviços de saúde privados – hoje presa desejada e lucrativa dos grandes grupos económicos – que crescentemente absorvem profissionais do SNS. E a solução para um “acólito” do Governo e políticas do PS, que aliás começa por subestimar o problema, passa por exigir uma contrapartida financeira aos médicos que optam pelo privado e autorização para o ensino privado de medicina…
A brutal subida dos preços de bens agro-alimentares, fruto da especulação decorrente da crise financeira internacional (sem qualquer vantagem para os agricultores portugueses ou outros) pôs a nu a brutal fragilidade do País em matéria de soberania alimentar. (Conceito que traduz a maior ou menor suficiência com que um país produz os bens necessários à alimentação dos seu povo). E para lá da redescoberta pela comunicação social dos grandes défices agro-alimentares nacionais, nomeadamente em produções estratégicas, assistimos entre a estupefacção e o risível à proclamação pelo CDS e Paulo Portas da carência de «reservas estratégicas» de cereais! Isto é, os responsáveis, o CDS como o PSD e o PS, pela ruína da agricultura portuguesa, pelos seus elevados défices produtivos, os responsáveis pela liquidação da Reforma Agrária e de milhares e milhares de explorações agrícolas familiares, os apoiantes da PAC e das suas sucessivas reformas, no governo e na oposição, feitos anjinhos papudos, a lamentar a reduzida produção agro-pecuária nacional! Os mesmos, que simultaneamente, continuam a aprovar em Bruxelas e a pôr em prática nos campos portugueses a dissociação das ajudas ao rendimento da obrigação de produzir, medida que manifestamente provoca o abandono da produção. Os mesmos que nas pescas, aplaudem como principal medida política de resposta à subida do preço dos combustíveis, a aceleração do abate de barcos da frota pesqueira!

Falta de escrúpulos e amnésia

A questão energética, é talvez na actual e difícil conjuntura com que os portugueses e em particular a generalidade das pequenas empresas estão confrontados, o exemplo mais nítido da falta de escrúpulos políticos, de amnésia e mistificação na abordagem de um problema central da vida nacional. Quer no tocante à forte dependência do petróleo, ou aos elevados preços da energia eléctrica, quer na gravíssima ineficiência na utilização da energia ou no aproveitamento dos recursos endógenos do País – de que o caso mais clamoroso foi o dos recursos hídricos – os partidos responsáveis pela governação nas últimas 3 décadas, e com eles comentadores e articulistas, alguns que tiveram mesmo responsabilidades governativas, falam com a inocência dos iniciados, que descobriram agora a pólvora. Mais uma vez, nada têm a ver com a situação em que nos encontramos em matéria de energia. Nada têm a ver com o desastroso desmantelamento do sector público energético, através de umas ditas «reestruturações» (a última das quais da responsabilidade do actual Governo), feitas de privatizações das suas empresas e liberalização dos mercados de energia. Nada a ver com a segmentação da EDP (em produção, transporte (REN) e distribuição – o que não fizeram franceses nem alemães) liquidando a perequação de custos e inventando um «défice tarifário», nada a ver com o atraso de anos nos investimentos da GALP, nada a ver com o atraso de décadas na construção de barragens, nada a ver com malfeitorias semelhantes no gás natural! Nada a ver com a destruição da base científica, tecnológica e industrial, em recursos humanos e instalações, em matérias como por exemplo, o nuclear ou a produção de turbinas. Nada a ver com a falta de um Plano Energético Nacional, ou os preços e políticas da energia se encontrarem totalmente entregues à voracidade do grande capital monopolista nacional e estrangeiro. Choram agora lágrimas de crocodilo pelas renováveis, pela factura energética em combustíveis fosseis, e há mesmo os que lamentam o afunilamento dos transportes na rodovia e no automóvel, depois de anos de desprezo e liquidação da ferrovia e do transporte colectivo. Anjinhos que eles são! E no entanto bastará a leitura do Documento-síntese de um Seminário “Política Energética para Portugal” realizado em 1984 (Edições Avante), para se mostrar que a roda já foi inventada há anos e que se o País hoje, com as propostas dos comunistas, não estaria indemne à escalada do preço do petróleo, encontrar-se-ia em muito melhores condições para lhe fazer frente.
São os mesmos partidos e políticos, que perante a gravíssima crise financeira desencadeada pelo subprime norte-americano, e as arrastadas crises em bens essenciais (face visível do icebergue que afunda a economia real), procuram fugir às reflexões e conclusões que se impõem: a irracionalidade de uma economia determinada pela especulação financeira, submetida à libertina e predatória circulação dos fundos financeiros. Mas percebe-se. Tal significaria questionar, pôr em causa o capitalismo hoje, de que as referidas «manifestações» financeiras, são lógico desenvolvimento e intrínseca parte. E eles não o querem questionar, mas defender!
Os problemas do País, na saúde, na produção alimentar ou na energia, como em todas as vertentes da vida nacional, exigem outras políticas. E começam por exigir a ruptura com as políticas que nos desgovernam há anos. Ruptura com as políticas que se empenharam na recuperação do poder do capital monopolista na direcção do País.


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