Aparições
Na minha caixa de correio, a exemplo do que sucedeu a um milhão de portugueses, segundo consta, apareceu há dias um desdobrável convidando a descobrir «o que pode acontecer em Portugal no ano em que se comemoram os 90 anos das Aparições de Nossa Senhora de Fátima». Abri o folheto, na expectativa de grandes revelações – quem sabe o anúncio de qualquer milagre, que bem necessitados estamos, do tipo o governo PS converte-se ao socialismo e os salários vão aumentar, o emprego crescer, as condições de vida melhorar, ou então algo mais cósmico como a guerra vai acabar, haverá justiça para todos, nem mais uma criança morrerá de fome – mas o que encontrei foi uma sucessão de frases capazes de fazer corar de vergonha qualquer pessoa bem formada, católica ou não.
O panfleto começa por garantir que «Nossa Senhora chora» perante a possibilidade de «liberalização do aborto», pelo que é preciso ir às urnas recusar o «assassinato brutal de inocentes», justamente a «resposta que a Santíssima Virgem espera» dos eleitores.
Para além deste curioso recado da «Virgem» por interposta pessoa e via postal, a brochura, da autoria de uma agremiação que dá pelo nome de Acção Família, com sede em Coimbra, assevera igualmente que o dia 11 de Fevereiro é dedicado a outra «Senhora», esta de Lourdes, que desde «o primeiro instante da sua concepção» foi «imaculada», condição por vistos inspiradora pois «abriu uma fonte de vida para nos salvar». A empresa, embora não se perceba como, está igualmente relacionada com o referendo e é motivo de nova exortação à recusa da despenalização da interrupção voluntária da gravidez até às dez semanas.
Fixado o interesse das celestiais figuras pelas questões humanas, o desdobrável desce à terra para assegurar que só o voto não basta, são necessárias orações, pelo que a referida associação está a organizar uma «divulgação massiva do Terço da Vida» para «dar a vitória a Nossa Senhora e a Portugal». Trata-se, ao fim e ao cabo, de convidar os crentes a desembolsar 10 € na compra de um estojo do Terço da Vida, modelo dois em um, já que o pacote dá direito a um terço e a um livro com meditações apropriadas à ocasião.
Sempre de acordo com a brochura, o vil metal é «uma doação» à Acção Família, que remata a publicação com citações de «eminentes autoridades eclesiásticas».
Em sintonia com o teor do folheto, as eminências insistem na ideia do «crime do aborto» e invocam o 5.º mandamento: «não matarás». Estranha veemência esta, de prelados que hoje como no passado – das fogueiras da Inquisição à evangelização do Mundo Novo, das guerras coloniais às guerras humanitárias – abençoam os que matam em nome da civilização e não desdenham partilhar o poder com os que defendem a exploração do homem pelo homem.
Estranha veemência esta, de quem continua a lançar anátemas às mulheres porque hoje reivindicam o direito a decidir da sua vida reprodutiva, tal como não há muito tempo as excomungavam porque exigiam o direito ao trabalho, o direito a escolher o seu futuro, o direito de voto.
Não nos iludamos. O que está em causa não é uma questão de fé. O que está em causa é uma questão de dignidade e de respeito pelas mulheres e, sobretudo, o reconhecimento do seu poder de decidir. E é isso que assusta muita gente.
O panfleto começa por garantir que «Nossa Senhora chora» perante a possibilidade de «liberalização do aborto», pelo que é preciso ir às urnas recusar o «assassinato brutal de inocentes», justamente a «resposta que a Santíssima Virgem espera» dos eleitores.
Para além deste curioso recado da «Virgem» por interposta pessoa e via postal, a brochura, da autoria de uma agremiação que dá pelo nome de Acção Família, com sede em Coimbra, assevera igualmente que o dia 11 de Fevereiro é dedicado a outra «Senhora», esta de Lourdes, que desde «o primeiro instante da sua concepção» foi «imaculada», condição por vistos inspiradora pois «abriu uma fonte de vida para nos salvar». A empresa, embora não se perceba como, está igualmente relacionada com o referendo e é motivo de nova exortação à recusa da despenalização da interrupção voluntária da gravidez até às dez semanas.
Fixado o interesse das celestiais figuras pelas questões humanas, o desdobrável desce à terra para assegurar que só o voto não basta, são necessárias orações, pelo que a referida associação está a organizar uma «divulgação massiva do Terço da Vida» para «dar a vitória a Nossa Senhora e a Portugal». Trata-se, ao fim e ao cabo, de convidar os crentes a desembolsar 10 € na compra de um estojo do Terço da Vida, modelo dois em um, já que o pacote dá direito a um terço e a um livro com meditações apropriadas à ocasião.
Sempre de acordo com a brochura, o vil metal é «uma doação» à Acção Família, que remata a publicação com citações de «eminentes autoridades eclesiásticas».
Em sintonia com o teor do folheto, as eminências insistem na ideia do «crime do aborto» e invocam o 5.º mandamento: «não matarás». Estranha veemência esta, de prelados que hoje como no passado – das fogueiras da Inquisição à evangelização do Mundo Novo, das guerras coloniais às guerras humanitárias – abençoam os que matam em nome da civilização e não desdenham partilhar o poder com os que defendem a exploração do homem pelo homem.
Estranha veemência esta, de quem continua a lançar anátemas às mulheres porque hoje reivindicam o direito a decidir da sua vida reprodutiva, tal como não há muito tempo as excomungavam porque exigiam o direito ao trabalho, o direito a escolher o seu futuro, o direito de voto.
Não nos iludamos. O que está em causa não é uma questão de fé. O que está em causa é uma questão de dignidade e de respeito pelas mulheres e, sobretudo, o reconhecimento do seu poder de decidir. E é isso que assusta muita gente.