Devassa da privada

Anabela Fino
O Tribunal da Relação do Porto decidiu, a 31 de Maio, que a utilização de cartões magnéticos para controlar o número de vezes que um funcionário se desloca à casa de banho, a que horas o faz e o tempo que aí se demora não constitui crime de devassa por meio informático.
Segundo os juizes desembargadores que negaram provimento ao recurso apresentado por um trabalhador de uma fábrica de calçado – que acusou a entidade patronal de devassa da vida privada justamente por esta controlar electronicamente as idas à casa de banho –, a referência à vida privada existente no tipo legal de crime do art. 193.º do Código Penal apenas abrange «o núcleo duro da vida privada e mais sensível de cada pessoa, como seja a intimidade, a sexualidade, a saúde, a vida particular e familiar mais restrita, que se pretende reservada e fora do conhecimento dos demais».
Não é este o caso de uma empresa, opinam os juizes, porque «uma deslocação ao quarto de banho, no local de trabalho» é «perceptível pelas demais pessoas que se encontrem no local».
Curiosa concepção esta a dos juizes, que parecem ter da casa de banho – numa empresa que seja – uma imagem algo cosmopolita, como se de um átrio de hotel se tratasse, onde todos se cruzam no frenesim das entradas e saídas.
Mais curioso ainda é o conceito de «núcleo duro da vida privada», em que o aliviar da tripa ou da bexiga não se inclui no âmbito do «mais sensível de cada pessoa», como se de um acto social se tratasse, alegremente partilhado entre empregados e patrões, motivo de conversas inocentes para matar o tempo, do tipo «com que então o meu amigo hoje já foi três vezes à casinha...»
Talvez a moda, pelos vistos inocente e quiçá mesmo ditada pelo choque tecnológico, devesse ser adoptada nos tribunais, para os doutos juizes terem mais motivos de debate. O problema era se, na altura de fazer contas à produtividade, os meritíssimos mais assíduos do quarto de banho fossem confrontados com uma higiénica chamada de atenção, se não mesmo com uma dedução no vencimento como advogam os patrões, em cuja óptica os salários são pagos para trabalhar e não para custear a satisfação de necessidades por mais fisiológicas que sejam.
Já agora, convinha saber o que tem a dizer sobre o assunto a Comissão Nacional de Protecção de Dados Pessoais, tanto mais que, há cerca de uma década, ela própria suscitou a questão, o que levou o Supremo Tribunal Administrativo a reconhecer a ilegalidade deste tipo de mecanismos electrónicos, por originarem uma base de dados alheia à gestão do serviço.


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