Como é possível que os franceses tenham dito «Não»?

Agostinho Lopes (Membro da Comissão Política do CC do PCP)
Ou de como se fazem referendos para que os cidadãos digam «Sim», único resultado possível segundo comentadores e analistas, sociólogos e politólogos, sábios e personalidades correlativas, bem pensantes, claro.

O «Não» é in­con­ce­bível para as forças do grande ca­pital

É esta a preclara ilação que se pode retirar dos inúmeros comentários e análises que especialistas destas coisas, nacionais e estrangeiros, fizeram antes e fazem depois do «Não» do povo francês à dita cuja «constituição».
Decide-se ouvir os cidadãos e os povos em referendo. Para que eles digam da sua justiça. Para que eles façam as suas escolhas, pelo «Sim» ou pelo «Não» à dita cuja. Em tese, os cidadãos seriam livres para optar pelo «Sim», livres para optar pelo «Não». Tremendo erro! Engano! Ilusão! Inaceitável!
Segundo a generalidade das referidas personalidades, só há uma resposta possível: «Sim»! apesar do boletim de voto conter como resposta possível e alternativa o «Não». O «Sim» é a resposta exclusiva e única! E porquê?
Porque é impossível renegociar o texto do Tratado!
Segundo esses especialistas, aquele texto é o consenso possível (e pelos vistos único) entre os 25 países (embora 10 nem participassem da sua elaboração!). A Constituição «é como um puzzle em que cada peça sustenta todas as outras, o que significaria abrir uma caixa de Pandora sem fim à vista. As suas disposições constituem por outro lado o máximo a que os Vinte Cinco conseguiram chegar ao fim de mais de três anos de negociações». É impossível porque «não se pode pedir a quem já ratificou a Constituição, que recomece tudo de novo com base num texto diferente, apenas porque os franceses recusaram». Isto é, não há alternativa àquela «Constituição». Logo, podem consultar os cidadãos em referendo, mas atenção, eles têm que dizer «Sim»!
Porque a votação maioritária pelo «Não» é uma total irracionalidade. Um absurdo. Um completo erro de avaliação dos eleitores, que julgaram que votando «Não», estavam a votar contra os responsáveis pelos problemas do País, isto é, confundiram a «Constituição» com a cara do Chirac! Votaram «Não», mas de facto queriam votar contra o Governo Raffarin. Um pequeno problema que os adeptos do «Sim» não souberam esclarecer «pedagogicamente» durante o debate preparatório do referendo, e assim, os eleitores, confundidos, misturaram tudo e todos, «a Constituição», o Chirac, o Raffarin, o Durão Barroso, e outros que não vale a pena agora nomear! Nesta matéria, é espantosa (e em algumas partes abjecta) a argumentação de Eduardo Lourenço, de que o voto «Não» da França é um voto «contra si mesma, num remake suicidário, que só tem paralelo simbólico, na dé­bacle de 1940»! Ou seja, com a ocupação da França pelas hordas nazis.
Não, não é politicamente racional, razoável, correcto, historicamente adequado à França e à Europa o «Não». Logo é impossível o «Não», mesmo se o democrático referendo admitia o «Sim» e o «Não»! Como dizia alguém conhecedor destas coisas, os referendos são «perigosos»!

Re­fe­rendo ou ple­bis­cito?

Porque os que de­fen­deram o «Não» não sabem o que fazer com a mai­oria de votos «Não»
O «Não» é, como o próprio nome indica, a negação, a ausência de proposta, a impossibilidade do futuro. Angustiados, os adeptos do «Não», com a votação do «Não» nos braços, perplexos interrogam-se: o que vamos fazer com estes «Nãos»? Embora a resposta não seja difícil. Mandar às urtigas a dita cuja «Constituição» e construir um novo Tratado, para uma União Europeia de países soberanos e iguais, sem federalismo, neoliberalismo e militarismo.
Com o «Sim» tudo seria mais fácil, previsível e conforme com as ideias geniais dos pais fundadores. E casar-se-iam, como Deus com os anjos, harmoniosamente na dita cuja Constituição, o federalismo e a igualdade de direitos dos estados membros, pequenos ou grandes, o neoliberalismo, a liberalização total do comércio internacional e o combate ao desemprego, o militarismo e o alinhamento com a NATO e os EUA e a luta pela paz e o desenvolvimento dos povos!
Isto é, contrariamente a todas as notícias, de todas as agências noticiosas, de todas as CNN’s deste mundo, não era de um Referendo que se tratava no dia 29 de Maio de 2005 em França, mas de um Plebiscito, em que os cidadãos iam às urnas para votar «Sim». A presença da hipótese «Não» no boletim de voto era apenas para disfarçar o plebiscito de referendo.
Re­fe­rendar, re­fe­rendar sempre, até que dê «Sim»
A impossibilidade do «Não» está ainda bem presente nos motivos que os «especialistas» avançam para explicar o «Não»: crise de «representação política», o receio de perder «privilégios» dos franceses, o racismo e a xenofobia, o receio do «canalizador polaco». Bem presente nas manigâncias habituais que vão ensejando para preservar a dita cuja «Constituição»: a repetição do referendo, até que dê o resultado desejado, «Sim»!
Num passe de mágica, as políticas neoliberais da UE (e de todos os seus órgãos) e a «Constituição» que as pretende constitucionalizar e eternizar, pelo menos para 50 anos, os governantes franceses (como os de outros países, de direita ou sociais democratas) que as apoiam na UE e as aplicam em França, nada têm a ver com a «crise económica e social forte que predomina em França» e onde poderíamos destacar uma taxa de desemprego de 10,2 por cento, sendo de 23,1 por cento nos jovens! Crise, contra a qual votou «Não» a maioria do povo francês, e nesse «Não» englobou a UE, a Constituição, o Chirac, o Raffarin, e tantos quantos lhe apareceram a dizer «Sim» às dificuldades económicas, sociais e políticas que enfrenta. Como se a crise de representação política, o racismo e a xenofobia, o ódio ao emigrante que rouba o emprego, o populismo e o acolhimento da reacção de ultradireita e fascista não medrassem, como a experiência histórica abundantemente demonstra, onde as políticas de direita e da social democracia, afrontam e negam os interesses populares, onde as práticas políticas contradizem sistematicamente as promessas eleitorais!

Que fazer com este «Não»?

Mas a melhor e mais evidente prova da impossibilidade do «Não» são as formulas avançadas para contornar e ultrapassar as consequências do «Não» francês.
A principal é a ideia da repetição do referendo. Isto é, à semelhança do que aconteceu com a Dinamarca e o Tratado de Maastricht, com a Irlanda e o Tratado de Nice, fazer tantas vezes o referendo quantas as necessárias para acertar a vontade do povo eleitor com a vontade dos órgãos comunitários e os dogmas europeus dos especialistas. Isto é, com a vontade do grande capital transnacional europeu da UNICE e da Mesa Redonda dos Industriais (ERT). O «Não» é impossível, logo é obrigatório repetir o referendo até dar «Sim»! (O referendo é um instrumento democrático muito interessante, quando os seus resultados coincidem com o que as classes dominantes acham adequado!)
É evidente que a tese do prosseguimento dos processos de ratificação depois do «Não» francês, desprovido de qualquer sustentabilidade jurídica, política ou de simples bom senso, tem subjacente o objectivo de pressionar e chantagear a repetição dos referendos, em todos os países em que vencer o «Não»! Não explicam os defensores desse prosseguimento das ratificações o sentido jurídico e institucional da ratificação de um tratado já posto em causa, a não ser com a ideia preconcebida, de que quem votou «Não» acabará por votar «Sim». Ou então têm de admitir que, perante a necessária alteração do tratado decorrente de um processo de não ratificação, todo o processo recomeçaria, inclusive para os que o ratificaram na 1.ª versão! Refira-se ainda que se, no momento, a repetição do referendo não é ainda claramente reclamada para a França, vai já sendo descaradamente proposta para a Holanda!


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