Aprenda com o défice
Há quem lhe chame «deficit», em latim. Palavra não difícil de dizer mas muito pior de digerir. O Dr. Graça Moura, exímio tradutor de «A Divina Comédia» de Dante, poderia talvez dizer-nos se esta comédia que atravessa Portugal, e que nada tem de divina, vai dar a um consagrado Inferno ou a um alcançável Céu, prometido eleitoralmente, mas rapidamente descomprometido,
Com uma catadupa de notícias a entranhar-me olhos e ouvidos até que de farto desliguei os aparelhos ruidosamente invasores, saí para a rua. Mesmo à porta de casa fui abordado por um homem com todo o aspecto de cidadão honesto que me perguntou à queima-roupa: «Olhe lá? Já ouviu falar no valor do défice? Já viu quanto vamos ter que pagar? Ele é impostos, ele é taxas daqui e dali, ele é cortes em salários e aumentos de preços...»
Para seguir caminho, tentei dizer que sim, tinha ouvido. Mas o homem perguntou-me se eu sabia quem ia pagar o défice.
No gostoso léxico de Camões défice é neologismo que significa dívida. «Olhe, ao que estão por aí dizendo, vamos ser todos nós, porque é um défice nacional...».
Foi então que o homem com aspecto de honesto cidadão se passou. «O sr. até parecia ser pessoa inteligente, mas vejo que me enganei». E gritava que eu não entendia quem estava a dever a quem nem percebia quem estava a ser enganado. A cara do homem foi-se enchendo de uma raiva digna de um fotógrafo que quisesse memorisá-la. «Não sabe quem é o devedor e quem é o credor. Nem vê como nesta história do défice andam a querer virar o bico ao prego e a pôr o mundo de pernas para o ar. Quem deve não é quem trabalha. Esses são credores, e de uma grande dívida. Devedores são os que andaram estes anos todos a arrebanhar e arrecadar dinheiro à custa de quem trabalha».
Reconheci que o honesto cidadão, no seu raciocínio aparentemente simplista, tinha razão. De facto importa saber: dívida de quem a quem? E ele até era um cidadão informado: «Você sabe que Portugal, a par da Inglaterra, é o país da Europa onde é maior a diferença entre ricos e pobres? E que os lucros dos bancos têm vindo a subir desalmadamente? E vem agora o presidente da República dizer para aí que na concertação social é preciso repartir os sacrifícios! Mas nunca o ouvi fazer apelos para repartir os lucros! Farto de fazer sacrifícios estou eu! E apesar disso estou cheio de dívidas. Não é por gastar muito, não. É por ganhar muito pouco. Querem ver que ainda me vêm acusar a mim de ser responsável pelo défice nacional?! Que história é essa de repartir sacrifícios para salvar a Pátria? Mas qual pátria? A deles?»
E o honesto cidadão afastou-se resmungando ainda: «Só faltava agora que o sr. Presidente nos viesse dizer que até podemos aproveitar o défice para aprender a viver sem comer...»
Com uma catadupa de notícias a entranhar-me olhos e ouvidos até que de farto desliguei os aparelhos ruidosamente invasores, saí para a rua. Mesmo à porta de casa fui abordado por um homem com todo o aspecto de cidadão honesto que me perguntou à queima-roupa: «Olhe lá? Já ouviu falar no valor do défice? Já viu quanto vamos ter que pagar? Ele é impostos, ele é taxas daqui e dali, ele é cortes em salários e aumentos de preços...»
Para seguir caminho, tentei dizer que sim, tinha ouvido. Mas o homem perguntou-me se eu sabia quem ia pagar o défice.
No gostoso léxico de Camões défice é neologismo que significa dívida. «Olhe, ao que estão por aí dizendo, vamos ser todos nós, porque é um défice nacional...».
Foi então que o homem com aspecto de honesto cidadão se passou. «O sr. até parecia ser pessoa inteligente, mas vejo que me enganei». E gritava que eu não entendia quem estava a dever a quem nem percebia quem estava a ser enganado. A cara do homem foi-se enchendo de uma raiva digna de um fotógrafo que quisesse memorisá-la. «Não sabe quem é o devedor e quem é o credor. Nem vê como nesta história do défice andam a querer virar o bico ao prego e a pôr o mundo de pernas para o ar. Quem deve não é quem trabalha. Esses são credores, e de uma grande dívida. Devedores são os que andaram estes anos todos a arrebanhar e arrecadar dinheiro à custa de quem trabalha».
Reconheci que o honesto cidadão, no seu raciocínio aparentemente simplista, tinha razão. De facto importa saber: dívida de quem a quem? E ele até era um cidadão informado: «Você sabe que Portugal, a par da Inglaterra, é o país da Europa onde é maior a diferença entre ricos e pobres? E que os lucros dos bancos têm vindo a subir desalmadamente? E vem agora o presidente da República dizer para aí que na concertação social é preciso repartir os sacrifícios! Mas nunca o ouvi fazer apelos para repartir os lucros! Farto de fazer sacrifícios estou eu! E apesar disso estou cheio de dívidas. Não é por gastar muito, não. É por ganhar muito pouco. Querem ver que ainda me vêm acusar a mim de ser responsável pelo défice nacional?! Que história é essa de repartir sacrifícios para salvar a Pátria? Mas qual pátria? A deles?»
E o honesto cidadão afastou-se resmungando ainda: «Só faltava agora que o sr. Presidente nos viesse dizer que até podemos aproveitar o défice para aprender a viver sem comer...»