«Constituição» e federalismo
A nossa argumentação contra a chamada Constituição Europeia escora-se no estudo do documento e no processo que a ele trouxe.
Quanto ao processo, o documento deveria ser uma proposta de harmonização dos tratados que têm, desde o de Roma, de uma CEE com 6 Estados-membros, ao de Nice, na UE a 25, formalizado acordos entre-Estados, com base em negociações inter-governamentais (CIG), em condições sempre mutantes, como a evolução do número de membros bastaria para ilustrar.
Foi o mandato da Convenção, cujo presidente, Giscard d’Estaing, dele exorbitando, apresentou um «Projecto de tratado que estabelece uma constituição para a Europa». O projecto, aprovado por duvidoso consenso, foi adoptado pela CIG como documento de trabalho sujeito a retoques, e assim se aprovou o «Tratado que (ibidem)…» .
O processo não terminou com a aprovação no Conselho. Os povos, ou os seus representantes directos, têm de ratificar o que os executivos entre si acordaram. E não faltam exemplos de assim não ter acontecido; na Noruega duas vezes, na Dinamarca, na Irlanda. Pelo que um «não» na França, a que se dá tom catastrófico, teria precedentes e tão-só levaria à necessidade de uma paragem e a rever o processo.
Quanto ao documento, além do «pecado original» giscardiano que não há água benta «democrática» que lave, tem características que justificam clara rejeição: é militarista, neoliberal, federalista.
O militarismo e o neoliberalismo desta Constituição»
Esta dita constituição é militarista porque, na esteira da PESC, criada em Maastricht e reforçada em Amsterdão, se pretende passar da política de segurança comum à política de defesa comum e desta à defesa comum, e contribuir para a indústria militar que se alimenta em conflitos e guerras.
Trata-se esta característica definidora noutro lugar. Fica apenas a referência e a anotação que, como comunistas, só se podia estar contra documento que a tem como seu pilar.
É neo-liberal porque, no caminho iniciado com a CEE, a resposta do capitalismo à necessidade objectiva de negociações e acordos interNAÇÕES passou da união aduaneira ao mercado interno e deste à inserção na globalização capitalista, adoptando a transnacionalidade financeira como inevitável.
Também esta característica definidora é tratada noutro lugar, e passa-se à característica federalista pela «ponte» do «núcleo federador», o BCE e o euro, ou seja, a instituição-banco, sedeada em Frankfurt, e o instrumento-moeda única. Igualmente se anota que, como comunistas, não se podia deixar de estar contra documento em que se revêem – porque o inspiraram e contribuíram, directa ou indirectamente, para a sua redacção – grupos que, adaptando-se/forçando condições objectivas, globalizam planetariamente a exploração dos trabalhadores.
O federalismo
Esta chamada constituição é federalista, terceira razão para o «não».
Esta razão/argumento talvez exija mais que as outras. Não basta dizer, e provar, que é federalista para que, só por ser essa uma sua característica, se justificar que seja de recusar.
A posição marxista-leninista é, por princípio, contrária ao federalismo, mas não é inamovível, no respeito por um princípio geral, universal e intemporal (1). O federalismo pode mesmo ser considerado uma forma de transição para a unidade dos trabalhadores de países diferentes, na perspectiva de que a «questão operária» prevalece sobre a «questão nacional».
Longe se está de condições em que a dicotomia se coloque, até porque se deram passos atrás e perdeu oportunidade. A luta de classes no terreno trava-se em níveis nacionais.
Este federalismo é estação (terminal?) de percurso neoliberal e militarista. É classista. É a expressão super-estrutural que, na Europa, por via dos Estados-membros da UE, serve a actual fase do capitalismo.
Num seu livro (2), Sidjanski escrevia: «A União Europeia está dividida entre duas tendências opostas que se desenvolvem no seu seio: a dinâmica comunitária que constrói uma comunidade com vocação federal e a cooperação intergovernamental nas questões de política externa e interna».
Esta síntese, na aparência fundamentada, mostra uma caterva de equívocos: I) a UE não se divide entre essas tendências opostas; II) a dinâmica comunitária, nas relações sociais prevalecentes, desenvolveu-se passo a passo, por vezes com recuos, num ritmo condicionado pela luta social; III) essa dinâmica teve sempre latente a vocação federal, só começada a concretizar-se nos anos 90; IV) a prioridade para a financeirização criou a instituição (BCE) e o instrumento (euro), o «núcleo federador?; V) dificuldades e contradições da dinâmica reflectem-se no documento, por exemplo, o art. III-197.º esclarece que «…nos artigos referidos (,) por «Estados-membros» entende-se os Estados-membros cuja moeda é o euro», o que significa excluir 13 dos 25 actuais membros!; VI) a cooperação intergovernamental, necessária e desejável, sempre foi encarada, pelas forças relativamente dominantes, como transitória e veículo para se chegar ao directório, à supranacionalidade, à federalização.
A questão da soberania
Sendo legítima a opinião de que, neste estádio, o federalismo é o que melhor serve os povos, já legítima não é a argumentação de que quem tem outra opinião está amarrado a uma ideia de soberania, a um «soberanismo» ultrapassado.
A questão da soberania (e da democraticidade) coloca-se ao pretender saber-se onde as competências, quem as exerce, com que mandatos.
Ainda em 2000, J. Fischer (3) foi cristalino: «uma divisão precisa das competências entre a federação e os Estados-nações, no quadro de um tratado constitucional deveria deixar à federação os domínios de soberania essenciais e unicamente as questões que exigissem regulamentação a ser feita imperativamente a nível europeu, enquanto que o resto ficaria a ser da competência dos Estados-nações. Surgiria uma federação europeia livre do supérfluo e capaz de agir, plenamente soberana, embora composta por Estados-nações assumidos».
Sublinha-se, embora os sublinhados do transcrito sejam originais: para a federação plenamente soberana, competência nos domínios de soberania essenciais; para os Estados-nações, competência no… resto, e assumidamente porque decidido entre governos e ratificado.
Os artigos I-12.º (categorias de competências) e I-13.º (domínios de competência exclusiva) «constitucionalizam» esta «recomendação», tendo um português o direito (e a obrigação!) de se indignar com a inclusão, entre os domínios de competência exclusiva, a «conservação dos recursos biológicos do mar, no âmbito da política comum das pescas». Portugal tem competência (partilhada mas soberana) sobre cerca de metade do território submerso de todo o espaço da UE, e assim se abre o «mar nosso», que passaria para a competência exclusiva da União, para instâncias nada sensíveis e pouco interessadas na conservação desses recursos, muito mais em facilitar aproveitamentos predadores, como pescas de arrasto pelo fundo e emalhar no fundo. Um pormenor!
A plataforma e a «terceira perna»
Não há que separar as características. O federalismo é plataforma institucional assente sobre neoliberalismo e militarismo. Mas, para que seja estável, precisa de três pernas….
Por isso, sendo imprescindíveis o militarismo e o neoliberalismo, no federalismo de classe o maior suporte é a característica anti-social. Que se esconde na inclusão da «carta dos direitos fundamentais» que, por sua vez, não pode esconder a clara marca classista do documento. É significativo que a expressão «mercado interno em que a concorrência é livre e não falseada», mais adentro da floresta dos artigos seja substituída pelo «princípio de uma economia de mercado aberta e de livre concorrência», em particular no capítulo II – Política económica e monetária, que tem 25 artigos (7 para a política monetária), o que é interessante confrontar com os relativos à coesão económica, social e territorial, apenas 5 e com extensão bem inferior à do pormenorizado artigo II-184.º sobre défices excessivos!
Esta argumentação, contida no espaço possível, nem beliscará uma certa «inteligentzia bem falante». E não se diz «bem pensante» porque não lhe sobra tempo para pensar. Menos ainda para estudar e procurar perceber rumos da história, tão empenhada está (no duplo sentido do verbo) em beneficiar do aparentemente consensual porque a relação de forças na luta de classe assim o impõe ao nível da comunicação e da ideologia.
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1) - «Sendo em princípio inimigo do federalismo», Marx admitia-o, como no caso da Irlanda e da Inglaterra, «com a condição de que a libertação da Irlanda ocorra não por via reformistas mas revolucionária, por força do movimento de massas do povo da Irlanda, apoiado pela classe operária da Inglaterra». (Lénine, «Sobre o direito das nações à autodeterminação», Edições Avante!, 1977)
2) - Dusan Sidjanski, Para um Federalismo Europeu – uma perspectiva inédita sobre a União Europeia (prefácio de J. Delors), Principia, 2001
3) - «’Europe vers l’étreinte finale», Le Monde, 12.09.2000
Quanto ao processo, o documento deveria ser uma proposta de harmonização dos tratados que têm, desde o de Roma, de uma CEE com 6 Estados-membros, ao de Nice, na UE a 25, formalizado acordos entre-Estados, com base em negociações inter-governamentais (CIG), em condições sempre mutantes, como a evolução do número de membros bastaria para ilustrar.
Foi o mandato da Convenção, cujo presidente, Giscard d’Estaing, dele exorbitando, apresentou um «Projecto de tratado que estabelece uma constituição para a Europa». O projecto, aprovado por duvidoso consenso, foi adoptado pela CIG como documento de trabalho sujeito a retoques, e assim se aprovou o «Tratado que (ibidem)…» .
O processo não terminou com a aprovação no Conselho. Os povos, ou os seus representantes directos, têm de ratificar o que os executivos entre si acordaram. E não faltam exemplos de assim não ter acontecido; na Noruega duas vezes, na Dinamarca, na Irlanda. Pelo que um «não» na França, a que se dá tom catastrófico, teria precedentes e tão-só levaria à necessidade de uma paragem e a rever o processo.
Quanto ao documento, além do «pecado original» giscardiano que não há água benta «democrática» que lave, tem características que justificam clara rejeição: é militarista, neoliberal, federalista.
O militarismo e o neoliberalismo desta Constituição»
Esta dita constituição é militarista porque, na esteira da PESC, criada em Maastricht e reforçada em Amsterdão, se pretende passar da política de segurança comum à política de defesa comum e desta à defesa comum, e contribuir para a indústria militar que se alimenta em conflitos e guerras.
Trata-se esta característica definidora noutro lugar. Fica apenas a referência e a anotação que, como comunistas, só se podia estar contra documento que a tem como seu pilar.
É neo-liberal porque, no caminho iniciado com a CEE, a resposta do capitalismo à necessidade objectiva de negociações e acordos interNAÇÕES passou da união aduaneira ao mercado interno e deste à inserção na globalização capitalista, adoptando a transnacionalidade financeira como inevitável.
Também esta característica definidora é tratada noutro lugar, e passa-se à característica federalista pela «ponte» do «núcleo federador», o BCE e o euro, ou seja, a instituição-banco, sedeada em Frankfurt, e o instrumento-moeda única. Igualmente se anota que, como comunistas, não se podia deixar de estar contra documento em que se revêem – porque o inspiraram e contribuíram, directa ou indirectamente, para a sua redacção – grupos que, adaptando-se/forçando condições objectivas, globalizam planetariamente a exploração dos trabalhadores.
O federalismo
Esta chamada constituição é federalista, terceira razão para o «não».
Esta razão/argumento talvez exija mais que as outras. Não basta dizer, e provar, que é federalista para que, só por ser essa uma sua característica, se justificar que seja de recusar.
A posição marxista-leninista é, por princípio, contrária ao federalismo, mas não é inamovível, no respeito por um princípio geral, universal e intemporal (1). O federalismo pode mesmo ser considerado uma forma de transição para a unidade dos trabalhadores de países diferentes, na perspectiva de que a «questão operária» prevalece sobre a «questão nacional».
Longe se está de condições em que a dicotomia se coloque, até porque se deram passos atrás e perdeu oportunidade. A luta de classes no terreno trava-se em níveis nacionais.
Este federalismo é estação (terminal?) de percurso neoliberal e militarista. É classista. É a expressão super-estrutural que, na Europa, por via dos Estados-membros da UE, serve a actual fase do capitalismo.
Num seu livro (2), Sidjanski escrevia: «A União Europeia está dividida entre duas tendências opostas que se desenvolvem no seu seio: a dinâmica comunitária que constrói uma comunidade com vocação federal e a cooperação intergovernamental nas questões de política externa e interna».
Esta síntese, na aparência fundamentada, mostra uma caterva de equívocos: I) a UE não se divide entre essas tendências opostas; II) a dinâmica comunitária, nas relações sociais prevalecentes, desenvolveu-se passo a passo, por vezes com recuos, num ritmo condicionado pela luta social; III) essa dinâmica teve sempre latente a vocação federal, só começada a concretizar-se nos anos 90; IV) a prioridade para a financeirização criou a instituição (BCE) e o instrumento (euro), o «núcleo federador?; V) dificuldades e contradições da dinâmica reflectem-se no documento, por exemplo, o art. III-197.º esclarece que «…nos artigos referidos (,) por «Estados-membros» entende-se os Estados-membros cuja moeda é o euro», o que significa excluir 13 dos 25 actuais membros!; VI) a cooperação intergovernamental, necessária e desejável, sempre foi encarada, pelas forças relativamente dominantes, como transitória e veículo para se chegar ao directório, à supranacionalidade, à federalização.
A questão da soberania
Sendo legítima a opinião de que, neste estádio, o federalismo é o que melhor serve os povos, já legítima não é a argumentação de que quem tem outra opinião está amarrado a uma ideia de soberania, a um «soberanismo» ultrapassado.
A questão da soberania (e da democraticidade) coloca-se ao pretender saber-se onde as competências, quem as exerce, com que mandatos.
Ainda em 2000, J. Fischer (3) foi cristalino: «uma divisão precisa das competências entre a federação e os Estados-nações, no quadro de um tratado constitucional deveria deixar à federação os domínios de soberania essenciais e unicamente as questões que exigissem regulamentação a ser feita imperativamente a nível europeu, enquanto que o resto ficaria a ser da competência dos Estados-nações. Surgiria uma federação europeia livre do supérfluo e capaz de agir, plenamente soberana, embora composta por Estados-nações assumidos».
Sublinha-se, embora os sublinhados do transcrito sejam originais: para a federação plenamente soberana, competência nos domínios de soberania essenciais; para os Estados-nações, competência no… resto, e assumidamente porque decidido entre governos e ratificado.
Os artigos I-12.º (categorias de competências) e I-13.º (domínios de competência exclusiva) «constitucionalizam» esta «recomendação», tendo um português o direito (e a obrigação!) de se indignar com a inclusão, entre os domínios de competência exclusiva, a «conservação dos recursos biológicos do mar, no âmbito da política comum das pescas». Portugal tem competência (partilhada mas soberana) sobre cerca de metade do território submerso de todo o espaço da UE, e assim se abre o «mar nosso», que passaria para a competência exclusiva da União, para instâncias nada sensíveis e pouco interessadas na conservação desses recursos, muito mais em facilitar aproveitamentos predadores, como pescas de arrasto pelo fundo e emalhar no fundo. Um pormenor!
A plataforma e a «terceira perna»
Não há que separar as características. O federalismo é plataforma institucional assente sobre neoliberalismo e militarismo. Mas, para que seja estável, precisa de três pernas….
Por isso, sendo imprescindíveis o militarismo e o neoliberalismo, no federalismo de classe o maior suporte é a característica anti-social. Que se esconde na inclusão da «carta dos direitos fundamentais» que, por sua vez, não pode esconder a clara marca classista do documento. É significativo que a expressão «mercado interno em que a concorrência é livre e não falseada», mais adentro da floresta dos artigos seja substituída pelo «princípio de uma economia de mercado aberta e de livre concorrência», em particular no capítulo II – Política económica e monetária, que tem 25 artigos (7 para a política monetária), o que é interessante confrontar com os relativos à coesão económica, social e territorial, apenas 5 e com extensão bem inferior à do pormenorizado artigo II-184.º sobre défices excessivos!
Esta argumentação, contida no espaço possível, nem beliscará uma certa «inteligentzia bem falante». E não se diz «bem pensante» porque não lhe sobra tempo para pensar. Menos ainda para estudar e procurar perceber rumos da história, tão empenhada está (no duplo sentido do verbo) em beneficiar do aparentemente consensual porque a relação de forças na luta de classe assim o impõe ao nível da comunicação e da ideologia.
_________
1) - «Sendo em princípio inimigo do federalismo», Marx admitia-o, como no caso da Irlanda e da Inglaterra, «com a condição de que a libertação da Irlanda ocorra não por via reformistas mas revolucionária, por força do movimento de massas do povo da Irlanda, apoiado pela classe operária da Inglaterra». (Lénine, «Sobre o direito das nações à autodeterminação», Edições Avante!, 1977)
2) - Dusan Sidjanski, Para um Federalismo Europeu – uma perspectiva inédita sobre a União Europeia (prefácio de J. Delors), Principia, 2001
3) - «’Europe vers l’étreinte finale», Le Monde, 12.09.2000